A
Lama
As minhas botas
estão limpas
Mas o chão suja-se
quando passoExiste uma lama em mim
Que só eu sinto!
Tento limpar a
lama agarrada ao chão
Mas as minhas mãos
não lhe tocam sequerEla, a lama, ri-se de mim e para mim
Que só eu sinto!
As pessoas passam pelo meu chão
Gabam a limpeza e invejam o brilho
Não vêem a lama agarrada a mim
Que só eu sinto!
Um dia pisaste o
meu chão e escorregaste
Com as tuas mãos,
deste-me banhoLimpaste-me o chão daquela lama
Que eu já não sinto!
Assaltante da solidão inerte
Faz-me sangrar sangue vivo
Derramado à flor da pele
Manchando-me a alma gota a gota.
Esfrego esta pele arrepiada
São arrepios denunciantes
Portas escancaradas à minha alma
Indícios de devassa indesejada
Que a escrita põe a descoberto.
Esta memória dos
meus amores
Percorre-me o
corpo trémuloArranha-me a pele ensanguentada
Dissolve-me o corpo na alma
Tecendo-me uma nova pele.
O corpo e a alma
são os mesmos
Dissolvidos sob
uma nova peleResistente a amores intemporais
Indiferente a paixões eternas
Sobre a qual o sangue se esvai no vazio
Esta memória sempiterna
Despida da omnipresente razão
Encontra-me esfolado mas protegido
Encarcerado em nova pele
Que sangra sem emoção.
Esta pele sem pigmentação
E no entanto
impenetrávelMantém-me num sono dormente
Que mistura sonho e realidade
E a memória não assimila.
Esfrego sem tocar nesta pele
Casulo protector das invasões
Barreira dissuasora das violações
Pele que não me deixa tremer
Pele que as memórias não arrepiam.
O
Fumo
Teço devaneios nas
tuas evoluções
Brinco aos
prazeres sem emoçõesLavo os olhos contigo, fumo,
Até que dou por mim cativo da liberdade
Sonho e não quero outra vontade.
Já nada busco e
nada preciso
Talvez seja tonto
e sem sisoBasta-me cheirar-te, fumo,
E dispenso qualquer outra vivência
Sei que fujo, mas sem urgência.
Deleito-me nos
braços de Epicur
E tu abraças-me
com glamourAbençoado charuto que te produz, fumo,
Raíz de prazer sem fronteiras
Destruidor de recônditas barreiras.
O meu riso baila contigo
Sejas amigo ou inimigo
Quero-te na mesma, fumo,
Porque só a ti não consigo agarrar
E assim não te posso deixar de desejar.
Adormeço, sem
sono, à tua espera
Sem me mexer, para
nada perderArdo neste inferno em pleno inverno
Vivo o momento só com um pensamento
Antecipo o prazer que vou ter
Quando o sol raiar e beijar
Esta árvore que me olha tão só
Mas que do nada te trará até mim.
O dia nasce mas o
sol renasce
Tu apenas apareces
como por magiaSimples mas com devota determinação
Ainda que alguma nuvem se atravesse
O sol far-te-á crescer até mim
E eu de mãos e dedos estendidos
Adormecido mas sem sono
Aguardo que tu, sombra, me toques.
Somos
Que se roubam mutuamente
À conquista de um espólio sem par.
Somos dois conquistadores diurnos
Que se fazem cativos mutuamente
Ao assalto de um coração ímpar.
Somos duas almas
rebeldes
Entrelaçadas por
assaltos e conquistasQue reservam a noite para se darem.
Somos duas existências únicas mas singulares
Que se visitam em noites surpreendidas
Levando o que roubaram para se ofertarem.
Sou
Acossado por esta
tristeza teimosa
Escorrendo-me pelo
corpo mutantePrendendo-me com uma ventosa
Neste líquido fétido e sem vedante.
Sou, mas nem
sempre…
Este ornamento que me põe doente
Tapando-me os poros como placa viscosa
Sufocando-me o coração e a mente.
Sou, mas nem
sempre…
Apedrejado por
nostalgia perigosa
Mutilando-me o
sonho dementeTransformando a poesia em prosa
Neste papel onde nada me mente.
Sou, mas nem
sempre…
Amado na
incompreensão rugosa
Que me faz ser
ateu e crente.
O
Sonho
Sei onde vais buscar inspiração:
A este meu maldito bafo diurno.
Meu sonho que me persegues noite e dia
Sei de onde vem tanta atormentação:
Deste meu maldito hálito a nostalgia.
Meu sonho amigo
mas inimigo
Sei para onde me
ofereces lugar de consolação:Para esta maldita ideia de eu estar bem comigo.
Meu sonho
peregrino e vadio
Sei hoje que quero
a tua erradicação:Vou livrar-me deste maldito cio.
Meu sonho tão real
quanto mágico
Sei que te vou
substituir por uma cançãoE o teu esfumar nada terá de trágico.
Meu sonho
esvaziado e sem umbigo
Arquitectei a tua
desconstruçãoAo som do que canto quando estou comigo.
Meu sonho
possessivo
Adeus minha
obsessãoCantarei para me sentir vivo.
Fado
Envolta na saudade de ter alegria
Corrompe-me a alma durante o dia
Incendeia-me o corpo toda a noite.
Dizes-me que sentir assim é fado
Uma doença das minhas profundezas
Que me inverte o desejo alado
De amar todas as belezas.
Olhos nos olhos só
sei que sofro
Por não querer
deixar este sofrimentoQue é receber-te na forma de um sopro
Transfigurado mas sem fingimento.
Dizes-me que
sentir assim é fado
Um sentimento que
me oprimeUm frágil cuidado descuidado
Fado é definição mas não se define.
Sereia
em S
Serei sereia em
teu socorro
Sémen semearei em
tua searaSalmão serei e depois morro.
Saberei ser
singela sereia
Sulcarei a tua
solitária searaSentirei a solidão alheia.
Sonharei teus
sonhos ao sol
Sorverei o mar da
tua searaSuplicarei ao Senhor um atol.
Sereia soberana em
teu sentir
Soalheira será a
tua searaSereia serei se eu souber sumir.
Sumirei de soslaio e de súbito
Sacrificado e sepultado na tua seara
Serei ressuscitado como teu súbdito.
Serei sereia como tu, para te salvar
Saberás, sim, incendiar a tua seara
Salvar-me-ás, sim, para eu te amar.
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