Namorar
Deixa-me pernoitar
no teu regaço
Desejar que o dia
não tenha fimEnebriar-me na volúpia do teu abraço
Namorar como em dia de S. Valentim.
Rouba-me os beijos
que os meus lábios desenhem
Sufoca-me,
arranha-me, cura-me, enfimArranca-me os desejos que não mentem
Namora-me como em dia de S. Valentim.
Olhas-me nos meus
olhos que são teus
Tiro-te do sério,
pões-me fora de mimEmbalo-te nos teus sonhos que são meus
Namoramos e todos os dias são de S. Valentim.
As
Entranhas
As minhas
estranhas entranhas sangram
Sangue que este
coração já não querNum dilúvio de choro por quem as filhas são
O rasgar da ferida de conhecer o ser mulher.
Convoco os deuses
do fogo
Num desafio onde
me sei perdidoRejeito a sorte neste jogo
Pois querer ser queimado é o meu único pedido.
Mexo nas entranhas
e faço-me adivinho
Deixo de sentir a
tormenta da dorVejo os erros filiais transformarem-se em carinho
No orgulho pelo pai que sangra por amor.
O
Rio
Tropeçam montanha abaixo
Bebem terra para crescer o caudal
Deixam de ser um simples riacho
Crescem em beleza sem igual.
São águas que viajam apertadas
Percorrem misérias alheias
Engrossam com chuvas de lágrimas
Revoltam-se em mil cheias
Injustamente incompreendidas e insultadas.
São águas que não
podem parar
Feridas nos ramos
dos seus filhos salgueirosAnseiam por abandonar a paisagem
Desesperam por se diluir no mar
Mas estão condenadas a eterna viagem.
São águas onde me
banho sem frio
Mergulhando nas
alegrias da solidãoMolhando-me nas tristezas da multidão
Eu e elas um só, à vossa espera para secar,
São as minhas lágrimas, este rio.
Egoísmo
Peito inchado de tanto ar
Abre a boca e não fuma
Tal é o medo de esvaziar.
Eis um pássaro bom
voador
Asas para voo
certeiroOlhos de insigne predador
Nariz que não sabe o que é cheiro.
Eis um pássaro mal
acasalado
Só ele não se vê
envelhecidoA solidão foi o seu fado
De alegrias está empobrecido.
Eis um pássaro sem
eira nem beira
Passando em
revista a vida inteiraRejeitando qualquer alegria, por mais matreira
Aspirando por uma paixão, ao menos sorrateira.
Eis um pássaro
digno de aturado estudo
Semeador de
tristezas em quem esqueceuToureiro de alegrias do cinema mudo
Coveiro de flores a quem arrancou o gineceu.
Eis um pássaro a
querer sentir e acordar
Soletrando viver e
amar do fim para o princípioQuerendo ajuda para de novo aprender a voar
Sabendo que fora do ninho é o precipício.
Eis um pássaro,
agora digno mensageiro
Numa asa traz
tristeza, noutra alegriaMas ambas puras e sem argueiro
Iluminando o breu, fazendo da noite dia.
Eis um pássaro,
defunto egoísta
Voa agora rente ao
sentimentoAbanando a alma autista
Sentindo da vida o chamamento.
Eis um pássaro de bonita pluma
Peito inchado rejeitando a bruma
Abrindo a boca para beijar
Batendo as asas para amar.
A
Mentira
Inundado de verdades às avessas
Purgatório de falsas afirmações
Antro de corrupção íntima
Oráculo do desprezível
Altar da concupiscência
O esgoto das rejeições incha de mentiras
Vendo quem dele se alimenta nele se afogar.
Fugir de fugir, a
tropeçar na mentira
Vivendo o tumulto
dos dias em agoniaPercorrendo as escarpas das ilusões
Desafiando a gravidade por incúria
Subindo as montanhas sem declive
Arrastando a verticalidade na horizontal
Fugir de fugir, a tropeçar na mentira
Caindo num lago escuro para nele se afogar.
A mentira ecoa nos
ouvidos mais distraídos
Fura os tímpanos
mais sensíveisEnsurdece quem a proclama
Azucrina as verdades sonantes
Sibila as falsidades ao crepúsculo
Grita as verdades sem convicção
A mentira ecoa nos ouvidos mais distraídos
Deles jorrando sangue onde se afogar.
Vem então a chuva
límpida
Arrastando a
consciência em turbilhãoEnsopando a pele e os ossos
Empurrando a mentira para fora do corpo
Fazendo desabar os seus alicerces
Atravessando a intimidade em cataclismo
Vem então a chuva límpida
Lançando a mentira na lama, para a afogar.
A mentira
feiticeira arrasta-se penosamente
Os seus feitiços
já não incomodamFica o medo da lembrança
A atracção da facilidade
A falsa solução das dificuldades
Para combater com a energia do ego
A mentira feiticeira arrasta-se penosamente
O seu estertor será o início do amor.
Amar
Entramos nele à margem do medo
Queremos, desejamos, suplicamos
Que um estado assim não tenha fim;
Atrevemo-nos a
acreditar no amor
Vivemos o sonho da
unidadeDamos tudo o que não sabíamos ter
Recebemos o que desconhecíamos existir;
Julgamos amar o
amor
Iludimo-nos nas
suas formasConfundimo-nos com seu bem estar
Saboreamos o seu mal estar;
Fazemos
peregrinações nesse mar
Mergulhamos nas
suas ondasAbsorvemos a calma duma maré
Embarcamos na violência doutra;
Matamos a sede com sal
Ardemos de dentro para fora
Sufocamos com os olhos fechados
Vomitamos dilúvios de luz;
Cegamos os sentidos nesse clarão
Explodimos em sonhos sem contenção
Lambemos o prazer da dor
Invertemos a noite e o dia;
Rasgamos os pensamentos
Mutilamos o corpo quente
Destruímos as horas e os minutos
Para que o fim não mais acabe;
Esfarrapamos os
pés e as mãos
Arrancamos olhos,
ouvidos e narizMas continuamos a acreditar no amor
Sabendo agora que amar
é um estado de desgraça.
Morrer
A alma deixa de
doer
Os olhos já não se
cansam
As mãos prolongam
o corpo
O teu coração
deixa de se molhar
Não sobra nenhuma
lágrima
Para eu sobre ele
deixar escorrer
Morro de morte
voluntária
No entanto,
deixarei de querer morrer
Se por acaso
suspeitar que suspiras
Se por acaso
suspeitar o sonho
De ver a tua voz
no teu cheiro
De deixar de ouvir
a escuridão de não te saborear
Se por acaso os
teus gestos nublados
Tiverem o contorno
do teu coração
Então fugirei
deste consolo da morte.
O
Grito
Grito sem espasmo,
sem dor ou prazer
Grito com raiva,
com emoção e loucura
Grito para que
oiças o que não consigo dizer
Grito para que
saibas que não tenho cura.
Grito, não para
desafiar a tua surdez
Grito, não porque
sejas insensível
Grito, porque
desafio a minha mudez
Grito, porque
combato o impossível.
Grito que não
quero mais te amar
Grito que rejeito
a tua presença
Grito que não me
afogo neste mar
Grito que rejeito
esta sentença.
Grito para que
fique sem voz
Grito para que não
fiquemos sós
Grito para chamar
o rio à foz
Grito para que o
mar e o rio sejamos nós.
As
Chamas
Chamas que
incendiaste a meio do dia
A meio da
minha idade
Febre que torna o
mercúrio abrasador
Adoeceste-me de
tanta felicidade.
Chamas que ninguém
consegue apagar
A meio dizem
não
Levo as mãos a
este lado esquerdo
Quero queimá-las
nas labaredas do coração.
Chamas onde, sem
sono, me aconchego
A meio de um
cálice de vinho
Danço à chuva e
aqueço um mundo
Onde tu e eu
possamos fazer ninho.
Chamas rebeldes,
nunca apaziguadas
A meio
convocam Deus
A um testemunho
divino de um acto sagrado
À queima das
preces dos nossos desejos ateus.
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