O
Império
Sento-me no vazio
e observo-me
A minha imaginação
viaja sem paragensEntre a flor de cerejeira e a catedral gótica
Tentando construir um império de vertigens.
Algures alguém
sofre no mesmo exercício
De imaginação
desenfreada, sem travõesPercorre jardins e lagos com cisnes sem cor
Tentando construir um império de emoções.
Como actores que
persistem num palco em chamas
Nós, os que
imaginamos impérios de quimera,Apenas limpamos o suor do desprezo do público
Alargando este vazio que torna a vida efémera.
Queimar
O teu olhar
repousado em mim
Tão logo o consigo
captarProvoca uma combustão sem fim
Queimando-me de desejo.
Lançando o meu
olhar aos teus olhos
Derreto-me com o
que vejoQueimando-te até sermos só fumos
Subindo ao céu enlaçados num beijo.
A
Curva
Farto do conforto
falso de andar à deriva
Derrapei na curva
do tempoArdi na fogueira dos livros proibidos
Renasci no seio do magma arrefecido
Assustei-me com o leite do pensamento
Cresci na procura dos becos da alegria
Tornei-me carrasco da luz
Coveiro de amores encarcerados
Carpinteiro de cadafalsos
Algoz de carpideiras.
Derrapei na curva do tempo
Armadilha para incautos viajantes
Onde a alimentação é grátis
E a comida plastificada
Onde se adormece no meio do nada
No falso conforto da lareira virtual
Que nos aquece a indiferença
Que nos congela a vontade
Amordaça o pensamento
Nos transforma em mortos-vivos.
Derrapei na curva
do tempo
Acordei rancores
bafientosRessuscitei ódios amarelecidos
Sepultei a compreensão
Rasteirei a inteligência
Estrangulei a criatividade
Quis beijar a divina morte
Não consegui senão esta vida
Hoje sou eremita do tempo sem curvas
À espera que uma morte me beije.
Solidão
Viajo à superfície
da solidão
Lambendo os
contornos dos maresPerfurando as veredas da asfixia
Secando lágrimas em papel de escrita.
Viajo à superfície
da solidão
Percorro paisagens
inóspitasOnde me recolho na aragem fria
Para escrever poesia maldita.
Viajo à superfície
da solidão
Faço equilíbrio no
fio da navalhaProvoco nos deuses a ira
Recebo mortalhas como guarita.
Viajo à superfície
da solidão
Desencontro-me das
pessoasDesafio a penumbra da inteligência
Almejo a vida interdita.
Viajo à superfície
da solidão
Aqueço os
instintos junto dos lobosConquisto cavernas de impaciência
Onde os sonhos têm área restrita.
Viajo à superfície
da solidão
Não porque rejeite
a multidãoNão porque me isole na demência
Mas porque tu estás vazia de mim.
E então procuro-te
na solidão
Onde nunca te
devia ter perdidoQuero voltar a encher-te noite e dia
Como a uma fonte que nunca está cheia.
Vejo-te à deriva
na solidão
A vontade não te
deixa afundarAgarras a mão que te estendo da superfície
A mesma mão cheia de tudo sem fim.
Amparados pela
hospedeira solidão
Alcançamos a
margem da vidaPaisagem que queremos não mais largar
Para conseguir o equilíbrio que nos faz rir.
Erva
Daninha
Num sufoco de comiseração
Quem m´a arranca?
Esta erva daninha que me queima
Todo o corpo em putrefacção
Quem m´a arranca?
Esta erva daninha que me fulmina
Arrebatando-me o coração
Quem m´a arranca?
Esta erva daninha
gémea de mim
Será arrancada em
oraçãoPor ninguém que não eu!
Esta erva daninha já não cresce
Deixou de ter a sua alimentação
Por ninguém que não eu!
Esta erva daninha já definha
Contaminada pela minha podridão
Por ninguém que não eu!
Esta erva daninha
vai secar
Morta pelo fel da
devoçãoQue sobre ela vomitei em gargalhadas fatais.
Onde pisaste comigo tapetes floridos
Escondemos do mundo o perfume sublime
Das flores mágicas em que tocámos.
Demos as mãos e espirrámos o pólen
Em espirros de riso irreverente
Que fizeram cair lágrimas dos nossos olhos
Sobre as flores mágicas com que brincámos.
O céu dos
invejosos despejou chuva
Na violência da
inundação veio a insegurançaFomos separados pela lama da indiferença
Morreram as flores mágicas que abandonámos.
Agora o sol
vingador tempera a terra fértil
Procuro-te com a
semente de novos bosquesNa minha mão transporto uma tocha olímpica
Salva de entre as flores mágicas, levo-te esta túlipa.
Porto
de Abrigo
Lembro-me que não tenho idade
Nem tenho comunidade
Mas nestes momentos de castigo
Sinto falta de ti, meu porto de abrigo.
Olho
para ti, alma só mas invejada
Orgulhosa,
e por isso castigadaDói-me ver-te assim fustigada
Nesses pesadelos quero afastar-te do perigo
Ofereço-me como teu porto de abrigo.
Não penses que é
altruísmo
Isto que me abala
como um sismoQuero que saibas que é egoísmo
Pois a única forma de te ter comigo
É aceitares-me como porto de abrigo.
Lava de sombra incandescente, lavas
Encostas de civilização, enfeitas
Presépios de fogo em movimento, derretes
Noites a que se seguem noites, queimas
Dias que não viram qualquer luz, vomitas
Calores que nunca arrefecem, choras
Cinzas que perderam o calor, rezas
Boca fechada, olhos cerrados, anseias
Sofrimento íntimo, sem partilhas;
Vulcão de sonhos e pesadelos, engoles
Lava, a tua, com que queimas a solidão, a tua.
O
Jardim
Percorro, descalço, o meu jardim
Piso o chão que ainda cheira a ti
Abraço qualquer árvore, planta, tubérculo
Cometo o pecado de te colher para mim.
Hoje, transportada
pela volúpia sem fim,
Percorres,
descalça, o teu jardimAtrais-me e eu saio de dentro de mim
Para entrar com prazer na tua escuridão
E iluminar-te de amor o coração.
Hoje, como há
precisamente um século,
Percorremos, almas
gémeas, o nosso jardimCriamos ambientes que nos aproximam
Recusamos as evidências que nos afastam
Castigados pela memória de nele passear.
Hoje, como no
princípio dos tempos,
Lembramo-nos do
jardimOnde a beleza recusa abandonar o teu rosto
Onde a certeza de que o nosso amor existe
Nos alivia da memória que teima não ter fim.
E persiste.
Carlo Carrà, o funeral do anarquista Galli
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