A
Montanha
Só hoje vi a
montanha
Uma massa enormeUma decoração do céu:
A minha montanha.
Reconheço-a sem
hesitar
De olhos fechadosEm qualquer fotografia,
À minha montanha.
Respeito-a com
veneração
Pelo eco do seu
silêncioPor me deixar pisá-la,
A minha montanha.
De manhã cedo
esconde o sol
Á noite esconde
outras estrelasNoite e dia irradia luz,
A minha montanha.
A neve que lhe cobre
a cabeça
Seja inverno ou
verãoConvida-me a subir
À minha montanha.
Respiro o ar que
te envolve
Rejuvenesço no
cansaçoRejubilo por brincar na neve
Da minha montanha.
O adolescente que
vibra
Neste corpo
castigadoNão se cansa de trepar
A minha montanha.
Na cabana de
madeira
Vislumbro o mar
que não se vêTudo me dás e recebo
Ó minha montanha.
Exausto e sem
fôlego
Sento-me para
ouvirSegredos da tua boca
Ó minha montanha.
Todos os meus
sentidos
Juntos para te
sentirRecebem o teu maior tesouro
Ó minha montanha:
As pegadas nunca
apagadas
Os suspiros nunca
caladosO calor nunca arrefecido
O riso nunca sumido
Os pensamentos nunca varridos
Os monólogos nunca acabados
A saudade nunca aliviada
Os sonhos nunca amachucados
O odor nunca misturado
O frémito nunca reprimido
O amor nunca desperdiçado
Tudo isto o meu amor deixou
Na minha montanha
Sonhada, onde eu nunca fui,
Na minha montanha
Sonhada, onde eu nunca deixei de estar
Com o meu amor.
Respiro fundo
Vomito ânsiasRecito litanias
Vivo feliz
Só hoje vi a
montanha
Meu amorSó hoje partiste para ela.
Vais embrulhada na minha paixão
Só assim, orgulhosa por amares e seres amada,
A minha montanha te recebe.
Só hoje vi a
montanha
Meu amorSó hoje chegaste dela.
Vens embrulhada na minha paixão
Atropelas as palavras para me contares
O que deixaste na minha montanha.
O nevoeiro
dissipa-se sem pressa,
Caminhas ao meu
encontro,Vejo-te embrulhada na minha paixão,
Feliz, trazes-me a minha montanha.
Só hoje vi que tem a tua forma
Meu amor.
Tempo
As suas vítimas apontaram-lhe o dedo
Sem hesitação, identificaram por unanimidade
O vil causador de tanto infortúnio: o Tempo.
As vozes agrestes
ululavam de ouvido em ouvido
Acusando o Tempo
de crimes imperdoáveis:Ladrão da juventude
Portador da velhice,
Usurpador de recordações
Gestor de memórias a cronómetro… do prazer.
O acusado
ergueu-se lentamente
Senhor de todo o
tempo do mundoUsou uma voz profundamente calma
E com ela inundou o mundo:
Sou culpado! De tudo!
As suas vítimas permaneceram mudas
O Tempo havia-se condenado a si próprio
Mas os crimes de que era acusado, continuaram
E ninguém se sentiu aliviado ou justiçado.
Só o Tempo se
condena a si mesmo
Porventura serão
ciúmes de si próprioIncapaz de resistir às nossas tentações
Ele alimenta-nos os fantasmas de estimação.
A juventude
condenada pelo Tempo
Abandona os seus
ingénuos portadoresA quem são oferecidos substitutos indesejáveis
Enfeitados de sofismas desejáveis.
Lutar contra o
Tempo é cinicamente inglório
Pois sabe-se que
ele vence pelo cansaçoE nos aplica o golpe fatal, sem aviso:
Oferecendo-nos a recordação da nossa juventude.
A memória assim
oferecida
Situa-se num
patamar inatingívelDesenhando a nossa crueldade para connosco
A juventude traz já consigo o anúncio do seu fim.
Louco com
esperança, dou-te a minha alma
Para com ela
dançares, ó Tempo,Empresta-lhe o teu perfume de mulher
E devolve-ma, feita esperança louca.
Fissuras
Varro com gestos decididos
O pesadelo das fissuras
Na minha substância.
Com a ajuda de
quem me ouve
Varro com gestos
generososO risco de abrir fissuras
Na caverna do meu riso.
Com a ajuda de
quem me faz conversa
Varro com gestos
despudoradosA fissura matemática
Que me transformaria em elemento estatístico.
Com a ajuda de
quem me lê
Varro com gestos
obcecadosAs fissuras herdadas
De quem não me ajuda.
Querer
Para me sentir
Quero ser os teus olhos
Para me ver
Quero ser o teu nariz
Para me cheirar
Quero ser as tuas mãos
Para me agarrar
Quero ser os teus braços
Para me abraçar
Quero ser tu
Para me querer.
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