quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Cartas de Amor escritas na areia...

Porventura vou surpreender-te quando receberes esta carta. Hoje em dia, ninguém escreve cartas de amor. Basta falar, curtir, estar na boa. Mas eu sempre tive este desejo: o de registar fisicamente o que os meus olhos dizem aos teus, quando falamos empolgados sobre qualquer assunto, quando as nossas peles se tocam, quando descobrimos coisas novas que nos provocam arrepios. Juntos. Quando somos nós. Nós.
Hoje, sinto esta urgência de te escrever. Sinto esta vaidade, de que vais ter nas mãos que me acariciam, o que a minha mão pôs neste papel. E o que eu corri para arranjar este papel, amarelecido, que parece papiro! Para resistir ao tempo, para além de nós. Escrito com tinta permanente. Permanente.

Preciso dizer-te o quanto penso em ti. E penso tanto! Muitos disparates, sobre os porquês de não passarmos um sem o outro. Muitos diálogos imaginados sobre coisas que me esqueci de te dizer. Sabes? Quando estou longe de ti, dá-me prazer imaginar as tuas reacções sobre as coisas mais comezinhas que penso. E são horas a fio! Não te zangues muito, eu continuo a ter cabeça para as minhas obrigações. Sei que te podia telefonar para o móvel, mas perdia toda a magia. E desse prazer não abdico. Claro que te telefono muitas vezes durante o dia! Mas é apenas para te ouvir respirar.

Hoje, escrevo-te para fazer a ponte entre o passado que guardo na memória e o futuro que quero viver. É mais uma das tantas pontes que nos unem. Como os cheiros são pontes. E eu faço batota, prolongo pontes. Guardo o teu cheiro nas costas da mão esquerda, e levo-a ao nariz vezes sem conta, até o cheiro passar a existir apenas na minha memória. Nestes dias em que o sol se põe mais cedo, vou para a rua e deixo-o prolongar a minha sombra na tua direcção, até ela se tornar difusa e eu imaginar que já toca na tua própria sombra.

Não acredites no que os médicos nos disseram. Não te atrevas a desistir de lutar. Tenho planos, para fazer com que esses olhos brilhem com toda a intensidade que o mundo jamais viu. Quero alugar um teatro, só para ti, para declamar toda a poesia feita ao longo dos séculos entre apaixonados. Depois, quero comprar o tempo de antena de todas as rádios e televisões para contar ao mundo tudo o que sei sobre a doçura que te envolve. Para que o mundo me ajude a afastar esta amargura que sinto de não saber se estou perto, ou longe, do limite da capacidade de amar.

Regresso agora às memórias que trago de ti, desde o ofegar da intimidade até ao som puro da tua forma de rir. No fundo, escrever esta carta é profanar a tua individualidade. Mas, se não escrevo rebento. Possuído que estou do pavor de te perder. Tenho esta horrível premonição de que amanhã, quando te for visitar ao hospital, não tenhas forças para segurar esta carta. Desculpa, também eu tenho uns momentos de fraqueza.

Imagina! O telefone está a tocar, e não me apetece atender. Até o som do seu toque, ecoando nesta sala vazia de ti,...

… Retomo a escrita destas últimas linhas com um nó na garganta. Passaram, não sei quantas semanas desde que, com uma alegria adolescente, decidi escrever-te uma carta. De amor. Um nó que não mais me largou, desde que te vi naquela cama, tu e ela, muito brancas, chão, paredes, tecto, branco por todo o lado, e os teus olhos, bóias sobressaindo naquele mar branco, húmidos numa luta para se manterem abertos. À espera de me verem pela última vez, para depois se fecharem. Um nó que recebeu o teu último suspiro pelos meus lábios. Um nó que eu desejei me asfixiasse quando escondi a minha boca nas tuas mãos, que depois agarrei com as minhas, para que elas não arrefecessem. Um nó invisível que se mantém dentro de mim, barragem fraca demais para segurar estas lágrimas que teimam em forçar o caminho por este rosto abaixo. Um rosto que sinto envelhecer hora a hora. Nunca me tinha apercebido que os dias têm tantas horas. Todas incómodas, longas, vazias, más de viver. As piores horas são as que conto depois dos cães adormecerem. Noite fora. Noite dentro. Noites de desolação. Durante o dia, a angústia suaviza-se. Os cães pedem-me para lhes fazer companhia, com uns olhos tão meigos. Sinto que o fazem para me distrair. De vez em quando, vejo-os a olhar um para o outro. Muito parados, deitados frente a frente. Longos minutos na mesma posição, como estátuas. Depois levantam-se e correm até ao nosso quarto. E quando voltam, vêm, vagarosamente, de cabeça descaída, até ao pé de mim, onde me encontram já a soluçar.

Mas não te preocupes, nós vamos ficar bem. Só tenho de aprender a viver contigo, sem ti.
Vou dobrar esta carta e colocá-la na tua última morada, dentro do vaso onde repousam as cinzas da parte de mim que mais amo.