sexta-feira, 19 de maio de 2017

Pesadelo Impossível



Pesadelo

 
Sonhei que te tinha perdido
Sonhei que as estrelas tinham tombado
De um céu, de repente enegrecido.

Sonhei que te tinha perdido
Sonhei que as árvores tinham ficado despidas
Em plena primavera da vida.

Sonhei que te tinha perdido
Sonhei que os pássaros se tinham calado
Tristes, nos seus ninhos cheios de esperança.

Sonhei que te tinha perdido
Sonhei que os ventos se tinham imobilizado
E nada nem ninguém jamais me acordaria
Deste pesadelo.

Não me deixes sonhar, então!

 


 

Impossível

 
Eu pensava que era impossível,
Mas tu quiseste mostrar-me o mundo.

E um dia, pegaste na minha mão,
Levaste-a aos teus olhos,
E perguntaste-me: vês?

E eu vi
As flores que despontavam, na neve
As árvores carregadas de fruta, no deserto
Os pianos que tocavam sozinhos,
Fora das salas de concerto.

Eu pensava que era impossível
Mas tu mostraste-me o mundo.



Basquiat, fallen angel 

As lágrimas de uma Estátua




As Lágrimas

As minhas lágrimas também são salgadas
E temperam-me cada vez que aparecem
Provocadas pelo arrepiar da carne
Perante o encontro do espírito.

As minhas lágrimas escorregam
Para dentro das cavernas profundas
Onde encontro o meu ser
Brincando com o teu.

As minhas lágrimas fecundam
O deserto em que passeio
Dando vida ao camaleão
Que atravessa
Anónimo
Os pensamentos alheios.

 

 

A Estátua

Vejo-te em qualquer museu.
Incompleta todavia,
Pois, enquanto houver artistas
Ao longo dos tempos,
Nunca serás estátua acabada.

Vejo-te em qualquer museu
E procuro insinuar-me na Razão,
Perigosamente abanando a Vontade
Assente nos alicerces altruístas,
Plantados no chão egoísta.

Vejo-te em qualquer museu,
Deixando-me conduzir pelo prazer
De te comparar.
Quantas estátuas vestidas de seda
Murmuram a sua infelicidade
No falso consolo dos beijos frios!
E tu, estátua de mármore branco,
Derretendo-se, na felicidade luxuosa
De possuir alma.
Irradiando o calor que me atrai
A qualquer museu.


Basquiat, dustheads

Quanto vale a Arte?


Quanto vale...? Vale o que alguém estiver disposto a pagar. Será? Pergunta de múltipla resposta, sem dúvida. Este quadro foi hoje vendido por 110,5 milhões de dólares. Valor exagerado? De facto os valores sobem depois da morte dos seus criadores. Basquiat, um primitivista-neo-realista, morreu antes de fazer 30 anos, há quase 30 anos. E agora... Não tenho resposta para a pergunta. Ou antes, cada um terá a sua resposta.


Basquiat, sem título

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Profissão: especialista



Afinal, o que é ser especialista? Não hoje, mas amanhã.
A robotização irá substituir parte substancial da mão-de-obra que, hoje, se designa por especializada. São funções técnicas que, por isso mesmo, as máquinas programadas podem executar com facilidade e, há que admiti-lo, com várias vantagens. O lado negativo passará pelo crescimento do desemprego e/ou pela redução drástica do número de horas que o trabalhador humano pratica hoje.
Longe de estarmos perante uma situação utópica de libertação de tempo para lazer, a realidade será uma gradual e crescente onda de convulsão social, desde a perda de remunerações até à desintegração social.
Então quem serão os especialistas, no futuro? Ou seja, quem terá menos probabilidade de ser substituído por máquinas? Ou ainda, o que é que as máquinas não têm de humano e que as incapacita para exercer funções que requerem essa qualidade ausente?
Sentimentos!
Olhemos pois para os futuros especialistas. Cruzamo-nos com eles todos os dias, e quase não damos por eles. Olhem para os assistentes sociais, ou para os  que exercem qualquer tipo de terapia. Imaginam um robot a substituí-los? Muitos são voluntários, outros têm uma remuneração na base da escada de vencimentos. Não os consideramos especialistas, hoje. Será melhor olharmos para o amanhã, ou corremos o risco de ter uma sociedade envelhecida e abandonada, porque hoje desconsideramos os sentimentos como diferenciador da sociedade humanizada.

Casper D Friedrich, Abbey in the oak wood

Die Walkure


A Valquíria

Eu desejo desejar o desejo
De construir um fogo
Nunca imaginado,
Nunca sonhado.

Um fogo que irrompa
Em frente dos teus olhos
E aqueça as tuas lágrimas adormecidas.

Eu desejo sonhar o desejo
De construir uma pira de fogo
Nunca antes imaginada
Nunca antes sonhada.

Uma pira de fogo
Que queime e apague
A solidão dos teus medos.

Eu tenho a certeza de querer
Construir um fogo ardente
Nunca imaginado,
Nunca desejado.

Um fogo tal
Que, na forma de um beijo,
Mergulhe nos segredos dos teus olhos
E consiga apanhar uma centelha
Da felicidade que há-de vir.

Eu quero ser esse fogo.

Um fogo imolador
Dos nossos disfarces.
Um fogo protector
Do nosso ser absoluto.

Um fogo forte e vulnerável
Que saiba receber
Uma centelha tua,
guardando-a para sempre,

Uma centelha tua
Que me incendeie a mim
Que estou a construir o fogo
Agora desejado.


Bayreuth 2006

Memorabilia



O Sótão

 
O sótão é um lugar de infância,
Onde se vai buscar a magia
E a energia
Para recuperar os tempos perdidos,
Os tempos necessariamente mal gastos
Os tempos que tivemos de viver
Para depois acordar
E nos lembrarmos que existe um sótão
Algures...

Atinge-se a plenitude do ego
Quando se mergulha no altruísmo.
Acontece então o prazer sublime:
De mãos dadas com a vontade
Irreprimível
De partilhar
O sótão de cada um de nós.
Com alguém que também lhe chame seu

E nosso.

 

 
 

Os Búzios

 
Ao ouvido,
No barulho do silêncio do mar,
Os búzios falam-me de ti.
Ninguém mais ouve.
Só eu.
 
Vaidoso por ouvir o que eles sussurram
Desejoso de ver e tocar o que eles me dizem,
Penetro neles
Penetrando em ti
Penetrando em mim.

A forma como me recebes
Confunde-se com a forma como te amo.
E esqueço-me dos búzios
E da importância que eles tiveram...
Quando me falaram de ti
No barulho do silêncio do mar
Só a mim.
Ao ouvido.


Cartier-Bresson

Suspiros fantasmas



Os suspiros

 
Bebo os teus suspiros
Saciando a minha sede.
Sede da tua alma.
Sede da plenitude do teu ser.

Ainda que, nunca saciado
Fico cada vez mais completo
Ao absorver esses deliciosos suspiros
Que me trazem a consciência da tua calma
E a consciente felicidade de me saber
Eu próprio
Bebido por ti.

Fico cada vez mais completo
Por sentir a felicidade de me entregar a ti
No acto volitivo
De te completar
Sempre mais.

 
 
 

Os fantasmas

 
Se querer é poder, eu quero
Viver colado a ti
Sem outra dor que não a do prazer
Sem os fantasmas dos vivos que nos rodeiam.
 
Quero perder-me em ti
Para me encontrar.

 

Basquiat and Warhol

Quando escrevo


quando escrevo, visito-me solenemente
F Pessoa in Livro do Desassossego


A almofada

Às vezes durmo agarrado à minha almofada
Na esperança
De que ela seja uma tábua de salvação, e,
No silêncio frio
Das águas geladas
Das minhas ansiedades,
Ela me arraste para longe do desespero
Para bem perto de um sol
Capaz de derreter o gelo que me enclausura.

Às vezes durmo agarrado à minha almofada
Na procura incansável
De um sol
Que provoque a fusão
Entre o sonho e a realidade.
 
Não posso cansar-me.
Senão,  asfixio na minha almofada.
 


O silêncio

 
Sei e
sinto
Que estás sempre comigo.
E contudo, faz muito tempo que não te vejo.
Fisicamente.
Excepto quando fecho os olhos
E o universo todo pára.
 
Acontece o silêncio absoluto
E é nele que eu, de olhos fechados, te vejo
Fisicamente.
Então, embalado  pelo sereno desespero
Deste abençoado sofrimento
Deixo-me adormecer
No teu cheiro.
 

 

A Espera


A espera

Esperei-te para viver
Na avalanche de beijos
Que provoca o doce dilúvio dos nossos fluidos.
Esperei, inteiramente quebrado,
Náufrago do mundo,
Pela tempestade do teu amor.

Hoje, continuo a esperar
Com a certeza de que virás.
Agora, espero com a serenidade
Dos momentos sagrados.

Espero-te para viver.

 
E. Hopper, morning sun

O olhar


 
O olhar

O meu olhar viaja
Vagarosamente
Pelo teu corpo.
Escorre
Languidamente
Pelos teus braços.
Toca
O veludo
Da tua pele.
Arrepia-se
Nos teus arrepios.
 
O meu olhar beija o teu olhar.

Vezes sem conta.
Até que acordo.
E recomeço.

 
Gustav Metzeger

As Águas




As Águas

Parem águas revoltadas!
Deixai-me descer ao meu abismo
Com a imagem da minha infeliz felicidade.
Deixai-me beijar as imagens do meu amor ausente
Deixai-me rodopiar entre a realidade e o sonho.
 
Ah! Estas águas que me envolvem
Que me obrigam a querer
Ainda e sempre mais
O que já tenho.
Ah! Estas águas
Onde tu entraste
Sem nada me dizeres
Para que eu pudesse conquistar a certeza
De tu sempre estares
Onde me encontro.
 
Parem águas revoltadas!
Quero nadar nas tuas águas
Mergulhar nas tuas ondas
E beber-te.

O vento



Sempre mais sobre o Tristão


O Vento

 
Hoje vi o vento
E os meus olhos brilharam
Porque ele te trazia
Até mim
No esplendor do seu sopro.
E eu
Sem oferecer resistência
Deixava-o trespassar o meu corpo
Absorver a minha alma
Vivendo um estado de espírito sem mais conseguir distinguir
Quem era quem
Quem absorvia quem
Quem se dava a quem.
Éramos o vento.

 
Cruzeiro Seixas

Escravo de escrever - bocados de mim



Palavras ensaiadas de braço dado com o sentimento e a sua ilusão. Eis os esboços de um auto-retrato possível.


Tu

 
Encontrei, céptico
A pureza do impuro
E aprendi a amar, convicto
As impurezas do puro.
Falo do que se encontra nas pessoas
Aquelas a quem queremos.
Falo de ti
Que não me abandonas nunca
Que vives pelo prazer de me dares
Ar para respirar
De me dares
Espaço para me movimentar
Que vives pelo prazer
De te dares
A quem te sabe receber.

Encontrei então, a transparência 
De gostar da minha  opacidade.
Hoje, olho para dentro de mim
Com a mesma lucidez e serenidade
Com que percorro o meu exterior
E o que me é exterior.
 
Luto calmamente com as minhas raivas,
E gosto de me ver apaziguando-as;
Sei que só assim, me poderei entregar
Integralmente
A ti.

Por mim e por ti
Por nós
Quero que tu sejas tu.


Alex Israel, self-portrait

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Como não podia deixar de ser!






As palvras deles ecoam em mim

 
Wagner

A Música diz:

Tristan: Suavemente envolvido pela tua magia, docemente derretido ante os teus olhos...
Isolde:  coração com coração, boca com boca...
Tristan: numa união única, de uma só respiração...
Ambos:  os meus olhos ficam enevoados, cegos em êxtase, e o mundo e as suas vaidades esfumam-se...

 
F. Pessoa

Sem Música, diz:

Põe a tua mão
Sobre os meus cabelos...
Tudo é ilusão.
Sonhar é sabê-lo.

Ninguém comigo!
Desejo ou tenho?
Sou o inimigo –
De onde é que venho?
O que é que estranho?

E se sinto quanto estou
Verdadeiramente só,
Sinto-me livre mas triste
Sou livre para onde vou,
Mas onde vou nada existe.

Somos dois abismos – um poço fitando o Céu.

 
Tindersticks

Com Música diz:

E todos aqueles anos que gastei a construir-me,
Tentando travar a minha apatia
E a começar a dar dois passos em vez de apenas um,
Todos esses anos estão agora tão distantes.

 
Se eu te pudesse dizer o que sinto
E ponho moeda atrás de moeda
Só para te ouvir respirar.

 
Aqui estou eu, isto sou eu
Sou vosso e tudo o que é meu, tudo o que vêem
Se ao menos olharem suficientemente bem.

 
Já alguma vez pensaram no que temos cá dentro que nos mantém intactos?
Já alguma vez quiseram pegar numa faca e descobrir?

 
Rastejo, sem saber de onde ou para onde
Eu não pertenço
Ao centro das coisas, de onde tudo emana
A doença da cidade cresce dentro de mim

 
Estou ferido, na cidade não há lugar para o amor

 
O silêncio voltou
Será que o amor irá voltar?