quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Natal


Escolher Madalena é um exercício de risco. Mas só para quem se verga perante a hipocrisia. Aqui fica Madalena tal como Ticiano a viu. Sacrosensual. Como a Mulher almeja ser. Como o Homem a deseja.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Save Miguel


O Miguel é um sobreiro. Esta campanha em defesa da cortiça só peca pelo atraso que, infelizmente posicionou demasiado bem os seus concorrentes. Há muito que venho a alertar para este tema, escrevendo para a Revista de Vinhos e até para a Decanter. Cortiça sim. porque é um produto português, porque não é poluente, porque é um vedante de excepção, porque o seu elo fraco -o TCA - talvez tenha cura ( A process designed by NASA scientists to remove airborne contaminants can eliminate TCA as well. Airocide was originally developed in the 1990s to keep fruit and vegetables fresh on a space station. It has been proved in concept trials to remove 90-95% of TCA (2,4,6-trichloroanisole), which causes cork taint in wine, from a sealed room within 24 hours. The process works by sucking air through a box containing a 'bed' of titanium dioxide catalyst. This is irradiated by UV bulbs, oxidising any organic contaminants - in Decanter 11Dez08 ). Porque sim, apesar de enriquecer quem a explora, não sou invejoso. Recuso comprar vinhos com vedantes que não sejam de cortiça. E, principalmente no estrangeiro, já começa a não ser fácil. Por isso, Save Miguel.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Versão 2 do conto anterior, sempre inacabado



A
Richard Wagner


- Aceite os nossos desejos de uma boa estadia, Don Afonso!
Afonso de Coimbra agradeceu com um sorriso que o empregado interpretou como tímido. Nada mais longe da verdade: era um sorriso que brotava embrulhado num turbilhão de pensamentos e recordações. Afonso sorriu agradado pela forma como os empregados do Parador o tratavam: Don Afonso. No seu país, o tratamento Dom caíra, infelizmente, em desuso, há muitas décadas, e ele adicionava este facto ao cesto das pequenas coisas que, em seu entender, estavam a aniquilar uma forma digna de estar em civilização. Sem se considerar saudosista, uma das memórias que o visitava nestes momentos, pertencia à sua infância e referia-se à forma como algumas pessoas se dirigiam ao seu avô: Dom Manuel. Afonso, que, na altura, achava um tratamento normal, veio, com os tempos, a constatar que o Dom significava deferência pela pessoa, e hoje em dia a palavra deferência era um fóssil nos relacionamentos pessoais.
Afonso nunca se separava daquele cesto, tão cheio, de recordações que ele empunhava como estandartes de uma resistência à vulgaridade que transformava o ser humano em números. Ali, na Espanha dos Paradores, ele não era o hóspede do quarto 217, mas sim Don Afonso, a quem tinha sido entregue a chave da habitação 217. Fazia toda a diferença, mas o seu filho, quando o acompanhava em Espanha, não concordava com ele: que disparate tão grande, que vergonha a senilidade do pai, e ironizava chamando-o de Don Afonso de la Mancha, para depois encolher os ombros com indiferença consentida: qual a diferença entre Senhor Afonso e Don Afonso? Nenhuma, pai. Nenhuma? Que cegueira insensível a deste meu filho! E a Afonso restava-lhe a esperança de que a neta – meu Deus, como ele já tinha saudades da sua menina! – apreendesse o que de bom o mundo tem tido. E um dia, sem medo dos fantasmas que se penduram nos passados, ela convencesse o pai de que, ao mundo de hoje, faltam algumas coisas boas que se perderam com o nivelamento, por baixo, das pessoas. Coisas sem custos materiais. Que revelam civilidade. Recuperáveis. Assim se formasse uma geração assente em valores sólidos. E o filho, encolhia de novo os ombros, triste por ver o pai mais perto da utopia do que do bom senso realista. Mas ele, Don Afonso, viúvo e reformado, assumira como nova página da sua vida, a missão de transmitir à neta, de cativante brilho nos olhos, porque razões valia a pena viver. E nesses momentos Afonso abria o cesto e mostrava-lhe estes pequenos nadas, que ela agarrava para se sentir mais perto do avô. E Afonso sorria por ver crescer as raízes da dignidade.
Foi com este sorriso que Afonso ouviu a porta do seu quarto fechar-se, e se dirigiu à varanda. A paisagem era a mesma que encontrava todos os anos: um jardim que se espraiava por baixo dos seus pés, uma piscina imensa que transbordava de azul, mas principalmente um mar sem fim, que começava já ali, em Nerja, o balcão da Europa, e que não acabava nunca.
Afonso estava em casa. Quase feliz. Sentou-se numa das cadeiras, depois de colocar o toldo da varanda em posição que lhe tirasse o sol dos olhos. E começou a procurar sem ver. Procurava uma senhora, a dona dos seus sonhos e de uma parte da sua vida, a parte sonhada. Mas não via ninguém, apenas o desfilar de imagens de há muitos anos.
Ao longe, o mar aproximava-se dos seus olhos em ondulações imperceptíveis. E trazia-lhe este Parador, vindo de um passado intacto, de uma Nerja onde tinha conhecido Maria Duval, numa conferência de dois dias.
Ao perto, o relvado bem tratado, mostrava-lhe o interior desse Parador, como tinha ficado deslumbrado com a localização, mas, acima de tudo, fazia-lhe recordar como o destino os tinha colocado lado a lado ao jantar, depois de um dia em que, apenas a inteligência de Maria lhe tinha despertado a atenção, numa intervenção que fizera. O verde forte da relva recordava-lhe como a conversa fluíra entre ambos. Como as frases antes de começarem a ser ditas já tinham sido compreendidas. Como as horas, e não eles, devoraram o jantar. Como, num momento fatídico, olhou para a sua mão esquerda e se lembrou que era casado. Como o seu olhar fez ricochete para a mão esquerda dela. Como ambos coraram quando os olhos se voltaram a encontrar. Como naquele instante ela se levantou da mesa, desculpando-se e desejando-lhe uma boa noite. Como, de olhos desarmados, mentiu que também estava cansado, e lhe sorriu, como quem pede desculpa por existir. Meses mais tarde, Maria tinha-lhe confessado que aquele sorriso desconcertado tomara conta dela, do seu ser, da sua força para amar, do seu desejo de ser amada por ele.

Afonso mudou de roupa, para uns calções, desceu até ao relvado e passeou-se por ele, retendo o prazer do contacto com a relva, debaixo do mesmo sol de todas as primaveras vividas depois de conhecer Maria. Levava consigo um livro que havia comprado há já algum tempo, mas não tinha ainda sentido o impulso para o ler: “Viver para contá-la” do sensível Gabo. Dir-se-ia que estava à espera de qualquer coisa para começar. Olhou para o livro e, perante a sua memória, viu desfilar pela boca de Maria, um verdadeiro exército de escritores que ocuparam parte das leituras dos últimos anos. Quer de um quer de outro. Ibsen, Lorca, Duras, Yourcenar, Pessoa, Hemingway, Tennessee, Witman, Hugo, e outros de sensibilidades menos complexas, ou de que não conseguia lembrar-se, ou de que Maria não lhe tinha falado. Ou, muito especialmente, todos aqueles escritores que levaram uma vida inteira para escrever um único livro, valioso, por espelhar com sentimento genuíno vivências únicas. Mas, mas... cujo cativeiro de emoções afugentava os leitores.
Passou as mãos pelas lindas e caprichosas árvores, sentiu-lhes a vida, a sua seiva pulsava com o seu sangue e invejou-as por um segundo, só até se lembrar, quase instantaneamente, das mãos de Maria. Da primeira vez que uma lhe tocou, poisando no seu braço ao pequeno almoço, acompanhada de um “Bom Dia, posso sentar-me?” .
Com um sorriso virado para a árvore, lembrou-se de lhe ter respondido: “Claro, claro”, mas que, na realidade, o que quereria ter dito era a verdade que lhe devorava o íntimo desde a noite passada, e que não o deixara dormir: “Estava mesmo a pensar em ti!, deslumbraste-me com a tua inteligência, a tua forma de estar na vida. Nunca senti tanto prazer em falar com alguém”. Lembrava-se que conseguira, minutos mais tarde, completamente a despropósito, dizer que aquele era o melhor pequeno almoço que tomara em toda a sua vida, graças à companhia dela e ao cenário com o mar em fundo, da manhã primaveril. Lembrava-se que se seguira um silêncio, eloquentemente quebrado pelos pássaros.
E o sorriso continuava no rosto de Afonso, lembrando-se que chegaram atrasados à sessão da manhã. Que pouco falaram durante o dia. Que, no intervalo para o café da manhã, correu para lhe falar. Que Maria estava sempre acompanhada. Que se colocou entre ela e a mesa dos bolos, e distraidamente tirou um. Que nesse instante Maria fez voar a sua mão na direcção do mesmo bolo. Que as suas mãos se tocaram e o mundo parara. Que naquele instante, o universo os havia declarado um só. Que ao jantar, o anjo da guarda que no dia anterior os juntara deveria estar de folga: e que, por isso e só por isso, ficaram em mesas separadas. Que nunca comeram tão rapidamente. Que nunca ansiaram tanto pelo fim de um jantar. Que este nunca mais acabava, porque tinha discursos dos orientadores da conferência. Que foram para o bar do Parador, tentando ficar sós. E que não conseguiram. Até que a noite desceu sem piedade e Maria subiu com os colegas da empresa dela, não sem se despedir com uma súplica suspensa num último olhar.
O sorriso desvanecido de Afonso, recuperou vivacidade ao recordar que subiu ao quarto sem perda de tempo, conseguiu o número do quarto dela e quando lhe ia ligar, o seu telefone tocou e ouviu a voz de Maria: “ Queres ir ao cinema?” “Quero, vou já descer.” Ao cinema?! À uma da madrugada?! Ali? Era importante a hora? Qual hora? Importante? Importante era saciar a fome de viver com a sua alma gémea. Viver a sua alma gémea, que o tinha despertado para a vida. Viver, sem saber onde começava e acabava a sua identidade. Viver!

Ao notar que o sorriso se tinha transformado num riso, Afonso disfarçou e dirigiu-se para a esplanada do Parador. Sentou-se virado para o mar. O azul deslumbrante das águas que pareciam paradas, era salpicado aqui e acolá por pequenos barcos de pescadores. Antes do pôr-do-sol, ainda iria lá abaixo à praia. Gostava de ver os barcos no areal e absorver aquele ritmo. Indolente, porque alheio e desprovido de pressas. Sábio, por saber saborear a vida. O empregado interrompeu-o, recebeu o pedido de um xerez, cortesia a que se habituara por ter cartão dos Amigos de Paradores e deixou Afonso mergulhar de novo no seu passado:
Viu como chegaram, ansiosos, ao átrio do parador, praticamente ao mesmo tempo, e como entraram na madrugada, com dois sorrisos nervosos. Maria confessou que não sabia sequer onde era o cinema, nem fazia a mínima ideia se havia alguma sessão àquela hora. Ele quis dizer-lhe que o importante era estarem juntos, mas a boca era como se estivesse colada. Pelo caminho, nas pitorescas ruas de Nerja, foram falando de cinema. Antonioni a preto e branco, Visconti a cores, Wells, Wilder. Um cartaz afixado desviou-lhes a atenção: Sábado 21 de Março, António Ordoñez na praça de Ronda. “Hoje já é sábado”, disse Maria, com uma voz ligeiramente triste, “temos o encerramento da conferência de manhã, e a saída para o aeroporto, e...” Afonso colocara as mãos nos ouvidos, recusando acabar o sonho, até se aperceber que Maria se calara. Então, como quem muda de rua, ele começara a falar dos actores. Hayworth, Bacall, Bogart, Gardner, Garbo, Dietrich, Brando, Hoffman. Chegaram a um edifício que bem podia ser um pequeno cinema e imaginaram: eis o cinema, luzes acesas, a última sessão começa... agora. Riram, mas como duas almas infelizmente felizes! Inventaram o filme em cartaz. Inventaram que àquela hora passavam reposições e estava quase a começar... Casablanca. Calaram-se como se escutassem uma conspiração dos deuses. E regressaram ao parador. No caminho, não conseguiram falar. Atravessaram o lobby, e ouviram Sinatra. Night and Day. O ascensor abriu as portas, mas eles não se mexeram. Quando a canção acabou, Maria voltou a chamar o ascensor, marcaram piso 2 e piso 3. Ele saiu primeiro “Bons sonhos, Maria! Sei que vou adormecer a sonhar contigo.” Mas Maria não teve tempo de responder e o ascensor levou-a para o piso de cima.

A recordação do ascensor levou Afonso a atravessar o relvado até ao ascensor do parador que o conduziu até à praia. Pelos vidros, viu a praia aproximar-se. Saiu, desceu os degraus e começou a atravessar o areal. Contou doze barcos. Doze. Tantas vezes como as que o telefone do seu quarto tocou antes dele conseguir abrir a porta e pegar no auscultador. Sabia que era Maria. “ Não digas nada, Maria. Hoje é a nossa última noite e eu gostava de passar todos os seus segundos contigo.” Ela não lhe respondeu e ele voou pelo quarto fora e subiu as escadas. Maria recebeu-o descalça, mostrando os pés mais sensuais que ele alguma vez veria, pôs-lhe a mão na boca e ele abraçou-a, enquanto fechavam a porta.

Em Março, a praia estava com poucas pessoas, e Afonso, um pouco curvado sob o peso de tanta esperança, lá foi atravessando o areal, perscrutando barcos, pescadores, turistas. Olhava para as pessoas e tentava imaginar as suas vidas. Felizes? muito, pouco ou nada? O seu ânimo, como habitualmente, começava a fraquejar ao final da tarde. Enviuvara há cinco anos e esta era a quinta vez que vinha a Nerja, sempre no dia 21 de Março. Todos os anos vinha carregado de uma esperança cheia de vida, mas acabava por partir com um desalento que o prostrava durante semanas. A ponto de achar doentia esta peregrinação anual. Depois, a pouco e pouco, retomava as leituras, ouvia a música que lhe falava ao coração e começava a acumular novas energias e esperanças para o próximo ano. Se fosse vivo!, sublinhava a sua face racional. Cada ano com mais força.

Ao longe viu uma figura que lhe fez bater forte o coração, mas bastaram dois passos para desfazer o equívoco. Afonso fazia, uma vez mais, o balanço da sua vida, sem se arrepender das decisões tomadas. Fora casado. Um casamento “normal” na sua classificação. Um filho de que se orgulhava. Uma neta em quem depositava a esperança no futuro. Alguns anos depois de casar, conhecera a sua paixão no Parador de Nerja. Conhecera-a ali, naquela atmosfera, naquele mar, naquela areia, naqueles seixos tão arredondados pelo tempo. Já não era jovem, mas vivera-a tão intensamente, como a chama consome um fósforo. Encontravam-se sempre que podiam, amavam-se como se mais ninguém existisse no mundo. Mas existia. Ele e Maria teriam de tomar opções. Embora com a dor esmagada nas entranhas, sentiram-se orgulhosos da decisão tomada. Ambos com filhos e casados, não conseguiriam construir a sua felicidade sobre a infelicidade de quem amavam. Não conseguiriam voltar a falar-se, e muito menos a ver-se, pois a úlcera da paixão estava aberta e precisava fechar-se, encerrando no seu casulo o amor vivo e só assim intacto. Na despedida, o nó que Afonso tinha na garganta, deixou passar, quase inaudível, um juramento, feito ao rubro, olhos nos olhos: “Somos gémeos, como Sieglinde e Siegmund, e por isso, por muitos quilómetros que existam entre nós, nunca estaremos separados. Se um dia, o que hoje me faz decidir fechar o livro antes do fim, deixar de fazer sentido, eu Afonso de Coimbra, voltarei a abri-lo e esperarei por ti, Maria Duval, no Parador de Nerja no dia vinte e um de Março de todos os anos, até que tu também sintas condições para voltar a abrir o livro, ou até ao dia em que as forças do sopro da vida me abandonarem. Amen.”

Uma ligeira brisa começava a levantar-se, anunciando o pôr-do-sol e secando uma lágrima fugidia nos olhos de Afonso. Olhou para o livro e, com uma expressão de absoluta serenidade, como entoando uma oração, mudou-lhe o título: “Viver para vivê-la”. O sorriso que esboçou, quando entoou mentalmente o novo título, era de esperança conformada.
Com o escorrer dos anos pela sua vida, Afonso passou a valorizar, cada vez mais, os momentos que conseguia passar consigo mesmo, aprendeu a colocar a dor no altar das coisas que eram assim porque eram assim, porque eram de Deus. Num daqueles momentos, passados neste mesmo Parador, debruçado para a praia, a mesma praia que agora o observava, escrevera umas palavras que manteve junto a si desde então. Tirou um papel pequeno da sua carteira, dobrado, com vincos de cor acentuada pelos anos, desdobrou-o e leu devagar, como se quisesse dar tempo ao tempo, para lhe trazer o resto dos seus dias.

O jardim

Hoje, como há precisamente um século,
Percorro, descalço, o meu jardim
Piso o chão que ainda cheira a ti
Abraço qualquer árvore, planta, tubérculo
Cometo o pecado de te colher para mim.

Hoje, transportada pela volúpia sem fim,
Percorres, descalça, o teu jardim
Atrais-me e eu saio de dentro de mim
Para entrar com prazer na tua escuridão
E iluminar-te de amor o coração.

Hoje, como há precisamente um século,
Percorremos, almas gémeas, o nosso jardim
Criamos ambientes que nos aproximam
Recusamos as evidências que nos afastam
Castigados pela memória de nele passear.

Hoje, como no princípio dos tempos,
Lembramo-nos do jardim
Onde a beleza recusa abandonar o teu rosto
Onde a certeza de que o nosso amor existe
Nos alivia da memória que teima não ter fim.
E persiste.

Sempre que lia aquelas palavras, Afonso, arranjava forças para manter a esperança de viver, nem que fossem os últimos dois dias da sua vida, acompanhado pela sua paixão. E conseguia sorrir, como quem diz: ainda não estou velho! Posso esperar outro ano, e outro!...
A noite ia pedir um agasalho. Estremeceu com os arrepios que o percorreram. Não de frio, mas porque, de vez em quando, um pensamento negro atravessava-lhe o corpo, rasgando-lhe a alma, tirando-lhe bocados de vida: e se Maria já tivesse morrido? E Afonso recompunha-se, com o mesmo sorriso de sempre: Maria estava tão viva quanto ele, pois assim o sentia.
A praia estava já deserta, quando se dirigiu para o ascensor que o devolveria ao Parador. Rodou a chave para o chamar e esperou que a cabine descesse olhando fixamente para as paredes envidraçadas da porta. Pela primeira vez desde que chegara a Nerja, a sua cabeça não pensava, não recordava. Estava simplesmente à espera de um ascensor, via os cabos mexerem-se, depois a base do elevador que se aproximava, e dentro dele, uns sapatos rasos, umas pernas que bem poderiam ser..., uns joelhos como só conhecera os de .... e Maria com os olhos marejados e um sorriso nervoso.
O ascensor demorou uma eternidade a imobilizar-se. As portas abriram-se, ele quis entrar, ela quis sair, e o abraço que os uniu ouviu as palavras esmagadas pelas suas bocas unidas:
“Siegmund”
“Sieglinde”

E outro Conto, também para registo


Não sei contar estórias, mas esta passou-se há poucas semanas e encerra em si uma alegria robusta que me apetece soltar a todos os ventos.
Aconteceu na praia dos Gambozinos, um lençol de areia e rolinhos de pedra numa baía fantástica para onde Sagres se debruça. Um mar português, a quem tanto o mundo deve, e que permanece todos os anos igual. A algumas centenas de metros uma ilhota rochosa sobressai como um monumento natural, lembrando os navios que há cinco séculos atrás a bordejavam.

Tudo começou há mais de trinta anos. A empresa onde eu trabalhava organizou uma conferência internacional sobre os recursos naturais, que teve lugar num hotel de Sagres. Aí conheci uma senhora alemã, cujo fervor criativo na defesa dos recursos naturais me impressionou. Num dos intervalos dos trabalhos, pediu-me para lhe emprestar o meu carro, pois desejava visitar ao fim da tarde a extremidade oposta da baía. Ofereci-me para a conduzir. As horas passaram sobre nós e trouxeram a noite sem que disso nos apercebêssemos. Eu nunca tinha sentido tanto prazer em conversar com alguém. No dia seguinte, procurámo-nos insistentemente e apercebemo-nos de que algo mais estava a nascer entre nós. Ambos éramos casados, tínhamos uma vida familiar estável, e tentámos reprimir o relacionamento. Nessa noite era o jantar de despedida. Procurámos mesas separadas. O jantar começou com uma sopa de santola, e não me lembro do que me serviram a seguir, pois não toquei em nada. Os nossos olhos cruzaram-se vezes sem conta e notei que ela também nada tinha comido. Senti que nos debatíamos nos suores de um dilema.
Martirizei-me com cenários, ensaiei frases, e regressei à realidade com as palmas ao último discurso. Olhámo-nos e simultaneamente dirigimo-nos para a saída. Vamos à praia dos Gambozinos, sugeriu ela. Fui buscar as chaves do carro, mas antes passei pela cozinha e pedi para me arranjarem pão, queijo de Serpa, uma garrafa de vinho tinto, um saca-rolhas, uma faca e dois copos.
Sentados naquele areal tão igual ao de hoje, não sabíamos o que dizer, e o luar que nos iluminava parecia condenar o nosso encontro. Então deu-se o milagre, as nossas mão dirigiram-se ao mesmo tempo para a tampa do cesto e... tocaram-se.
Eram 6 horas daquela manhã de Julho, a claridade já tinha rasgado a madrugada, e nós tínhamos comido quase tudo. Do saboroso vinho restavam apenas alguns aromas na garrafa. Tínhamos decidido não nos voltarmos a falar, e muito menos a ver, pois a úlcera da paixão estava aberta e precisava fechar-se, encerrando no seu casulo o amor vivo e só assim intacto. A sua voz disse-me: “Sempre que ouvirmos Wagner estaremos juntos”. Na despedida, o nó que eu tinha na garganta, deixou passar, quase inaudível, um juramento, feito ao rubro, olhos nos olhos: “Somos gémeos, como Sieglinde e Siegmund, e por isso, por muitos quilómetros que existam entre nós, nunca estaremos separados. Se um dia, o que hoje me faz decidir fechar o livro antes do fim, deixar de fazer sentido, voltarei a abri-lo e esperarei por ti, neste mesmo areal no dia 12 de Julho de todos os anos, até que tu também sintas condições para voltar a abrir o livro, ou até ao dia em que as forças do sopro da vida me abandonarem. Amen.”

No passado dia 12 de Julho, a praia estava com poucas pessoas, e eu, um pouco curvado sob o peso de tanta esperança, lá fui atravessando o areal. Era fácil arranjar um poiso isolado. O dia prometia calor. Abri o meu cesto e tirei uma garrafa de vinho tinto, arranjei um seixo grande e atei-o a ela, enterrando-a parcialmente à beira-mar. Assim ia controlando a temperatura, ora aproximando das ondas ora afastando. A meio da tarde o meu ânimo começou a fraquejar. Enviuvara há cinco anos e esta era a quinta vez que regressava aos Gambuzinos. Sempre no dia 12 de Julho. Todos os anos vinha carregado de uma esperança cheia de vida, mas acabava por partir com um desalento que me prostrava durante semanas. A ponto de achar doentia esta peregrinação anual. Depois, a pouco e pouco, retomava as leituras, ouvia a música que me falava ao coração e começava a acumular novas energias e esperanças para o próximo ano. Se fosse vivo!

Em cada um destes cinco anos tinha sido assim. Chegava aos Gambozinos com um cesto com pão, queijo de Serpa e uma garrafa de vinho tinto. Ao fim da tarde, começava a refeição. Sozinho. À minha frente passava invariavelmente o filme de uma outra noite. Que seria feito dela? Conhecera-a ali, naquela atmosfera, naquele mar, naquela areia, naqueles seixos tão arredondados pelo tempo. Alta noite, regressava ao carro e ia-me embora.

Este ano, a tarde trazia uma ligeira brisa. A noite ia pedir um agasalho. Estremeci com os arrepios que me percorreram. Não de frio, mas porque, de vez em quando, um pensamento negro atravessava-me o corpo, rasgando-me a alma, tirando-me bocados de vida: e se ela já tivesse morrido? Mas recompus-me, com o mesmo sorriso de sempre: ela estava tão viva quanto eu, pois assim o sentia.

A praia estava já deserta. Estendi uma toalha que segurei com seixos nas pontas. Linho, seixos e areia. Sorri. Dispus o queijo numa tábua, o pão alentejano num cestinho de prata e tirei os dois copos que levei devidamente acondicionados. Pela primeira vez desde que chegara aos Gambozinos a minha cabeça não pensava nada, não recordava nada. Estava simplesmente a pôr uma mesa para uma refeição.
Olhei para o céu e calculei que restavam umas duas horas de sol. A água do mar ainda estava apetecível e decidi dar uns últimos mergulhos. Enquanto me refrescava tentei calcular a temperatura da água. Talvez 18 graus. Temperatura perfeita para aquele vinho. Saí da água, sacudindo os braços, de olhos baixos para agarrar a garrafa. No seu lugar uns pés desnudados. Ergui a cabeça, a tremer. Uma senhora, provavelmente tão envelhecida quanto eu, mas que ostentava um sorriso, provavelmente tão nervoso quanto o meu, segurava, junto ao coração, a garrafa.

O abraço que nos agarrou ouviu as palavras esmagadas pelas nossas bocas unidas:
“Siegmund”
“Sieglinde”

Um conto,... escrito, publicado e premiado, há um par de anos


As minhas amigas lá me foram prevenindo sobre a insólita característica que acompanha o estado de gravidez da maior parte das mulheres: bizarros e incontroláveis desejos de comida. Com exemplos: fulana só queria comer cascas de laranja. Arrrgh! Beltrana desejava figos de capa rôta... em Janeiro. E eu, franzindo a testa, sorria de incredulidade. Verás! lá mais para o Verão, diziam-me elas. Avisadamente. A sentença estava lavrada, as minhas férias de Verão seriam um amontoado de dias atacados por estranhos desejos tão difíceis de satisfazer como encontrar um Maybach no parque de estacionamento de um hipermercado.

As semanas passaram, a barriguinha começou a mostrar-se e, absorvida por tanta alegria e tantas compras que eram sonhos concretizados, lá fui esquecendo aqueles avisos.

Trabalho na baixa lisboeta e um dia, entro numa pastelaria e oiço-me a pedir... uma francesinha. Isso só no Porto, minha senhora.
Caí em mim, esqueci-me da fome, e fui para o escritório. O trabalho deve ter-me distraído, pois só voltei a pensar no assunto a caminho de casa, quando voltou a apetecer-me uma francesinha. O meu marido entretanto chegou e fazer as malas para a nossa quinzena de férias no Algarve voltou a distrair-me.

Nessa noite não consegui adormecer. O meu pensamento visitava, uma a uma, as conversas avisadoras das minhas amigas sobre os desejos das grávidas. Não havia precedentes sobre francesinhas. Estava a acontecer-me! Estava apanhada pelo síndroma do desejo da grávida. Meu Deus, não poderei ultrapassar isto com racionalidade? O meu marido mexeu-se. E se eu lhe pedisse para interromper as férias a meio e darmos um pulo até ao Porto?

Foi uma noite em que conheci de perto o pânico. A angústia alojara-se definitivamente na minha almofada. O meu marido detesta francesinhas, e tínhamos as noites todas planeadas para jantares que fossem marcos gastronómicos. Como é que eu lhe haveria de dizer que preferia uma francesinha a um vol-au-vent de marisco e peixe?

Conheci o meu marido numa roda de amigos à volta da mesa. Era um grupo que planeava os sábados, de forma rotativa, em casa de cada um. O anfitrião cozinhava, escolhia os vinhos, e no fim aguardava em sofrimento a pontuação dos restantes convivas. Pontuava-se o arranjo da mesa, a entrada, o prato principal, a sobremesa, o vinho escolhido para cada etapa, e, finalmente, a harmonia do conjunto.
Aquele que é hoje o meu marido, pretendia dilatar o âmbito da pontuação para que esta abrangesse o café, o Porto e o charuto. No seu purismo e perfeccionismo, aceitava que não fossem pontuados os maltes.
Estão agora a ver com quem eu casei! Não é de admirar os calafrios e os horrores que me percorreram nessa noite.

Só que, o pior estava para vir. Na viagem para sul, parámos numa área de serviço da auto-estrada. Pedi uma francesinha, em voz baixa, mas o meu marido ouviu-me. Ergueu o sobrolho e esperou que eu repetisse o pedido. Saiu-me um café com leite e um pastel de nata, no meio de um sorriso nervoso. O incidente passou, mas à noite, sentados no terraço do restaurante, com a carta de refeições aberta a vinte e cinco centímetros dos meus olhos, eu não conseguia ler coisíssima nenhuma. Tudo o que eu queria era uma simples francesinha.
Pedi ao meu marido para escolher por mim. Estranhou e quis saber o que se passava. Contei-lhe tudo. Dos desejos mais disparatados das grávidas. Mas que deveriam ser encarados como absolutamente normais. Engraçados até. Tradicionais, como os pratos que ele às vezes confeccionava e que até saíam bem.
Como a escolha estivesse demorada, o meu marido pediu um “chip dry”. Ou seria para arranjar coragem de não me interromper? E lá lhe contei do dia anterior, na pastelaria. Ele fez Ah! E nessa exclamação percebi que estava a ver-me na área de serviço e me considerava tontinha. Estás cansada, dizia-me ele, um carabineiro e um salmonete grelhado vão devolver-te a serenidade, nesta noite tão bonita. Acho que sim, disse eu. Mentira, não achava nada. Qual carabineiro qual salmonete, o que eu queria mesmo era uma francesinha.

Enquanto esperávamos, o meu marido tentou abordar psicologicamente a questão dos desejos. Tudo influência das coisas que as mulheres contam umas às outras. Estás a insinuar que eu sou influenciável? E abri-lhe os olhos. Ele corrigiu para a susceptibilidade e hipersensibilidade a que está sujeita uma mulher grávida, e por isso permeável a sugestionar-se com tudo o que lhe pareça normal e bom para o seu bem-estar e o do bébé.

Notei o alívio da sua expressão quando trouxeram os carabineiros. Confesso que também senti um certo alívio com a possibilidade de desanuviar a conversa, mas o meu marido provocou-me logo de seguida. Estão óptimos, fresquíssimos, com os sucos no ponto, disse ele. Estão secos, não me sabem a nada, disse eu e apenas comi uma ínfima parte. Tínhamos pedido um Alvarinho, que estava esplêndido, mas o meu marido sabendo que eu aprecio melhor uma refeição com um tinto ao estilo “Novo Mundo”, atribuiu a minha falta de apetite a esse factor e tentou corrigi-lo a tempo. Rejeitei o tinto alegando que estava acima da temperatura a que deveria ser servido. Apesar do balde de gelo do Alvarinho ter albergado o tinto, nada feito. Amuei.
O jantar estava a ficar estragado. O meu marido ausentou-se por minutos. Continuámos calados até nos arranjarem o salmonete para os nossos pratos. Desta vez, ele, ao ver que eu mal tocava no peixe, evitou qualquer comentário apreciativo sobre o seu estado, e disse-me olhos nos olhos: não te esqueças que tens de alimentar o bébé.
Que bem me soube o salmonete, e lá me desculpei com as saudades de um bom sabor a mar. Até que veio a carta das sobremesas. Pedi um gelado. O meu marido fez aquele sorriso matreiro de que tanto gosto e veio um prato com meia fatia de pão, meia salsicha, meio bife, um ovo estrelado, encavalitados em mais qualquer coisa que não me lembro... Juro que devorei aquela sósia de francesinha com o maior deleite e os olhos húmidos.

Viagem no tempo










Penso que todos nós vivemos a nostalgia daquela viagem que nos deixou impressões mais profundas. É até legítimo o desejo de repeti-la. Ora comigo existe uma outra nostalgia que me invade com inusitada frequência: por uma viagem impossível de repetir.
E dou por mim a sonhar com aquelas viagens de comboio - muitos chamavam-lhe Maria Fumaça - que eu fazia com o meu avô pelo Douro. O meu avô que me pegava ao colo para eu ocupar um lugar desaconselhável no peitoril da janela, onde eu absorvia o cheiro do comboio a vapor e me deliciava com o fumo que via nas curvas; de onde eu via passar o filme mais bonito do mundo: o rio, as quintas, as vindimas, a labuta das jornadas de sol a sol, e na carruagem toda uma banda sonora feita de vozes alegres que diziam coisas que eu não percebia, acompanhadas de risadas sonoras misturadas com a estridência das gaitas de beiços e o piar dos frangos transportados em cestas de vime. Ao longe o som do sino duma igreja provocava fome naquela gente. Feliz à sua maneira, mas feliz. E era um abrir de açafates forrados de onde saltavam cheirinhos que calavam a vozearia. Todos bebiam daqueles garrafões de vidro forrados de vime, e logo o calor da conversa subia de tom e entrelaçava-se com gargalhadas que os transportavam até ao sono igualmente sonoro.
Eu lutava por vencer o sono mas não conseguia. Que pena, pois hoje lembrar-me-ia de mais pormenores destas viagens impossíveis de repetir.

Ficou o fascínio pelos comboios a vapor. Enfim, sem aquele cheiro enebriante.

Impromptu


Abri o blogue para escrever sobre uma viagem que me veio à memória e saltaram-me aos olhos os dois Turner. Lindos. Vou passar a colocar mais fotos no blogue. Fica a faltar a Música. Com mais tempo, talvez. Para já, um Sisley. Para sonhar.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Turner




Sim, é o Temeraire, sim, é o Grande Canal, sim, é o Mar, é o Fogo, é a Terra, é o Ar. Sim, são todos os Elementos unidos. Podiam ser quaisquer outros lugares, quaisquer outras visões,... desde que pintados por Turner. Falariam comigo, tal como os seus quadros na Tate, na National, ou aquele que vi em Filadélfia, me fizeram estremecer quando os vi olhos nos olhos. Tal como, alguns dos seus quadros já não cabiam nos meus olhos e passaram-se para todo o meu corpo, arrepiando-me, à medida que me penetravam. Os génios não deviam morrer, pois não?

Depois do Natal

Antony! The crying light! Só vai sair depois do Natal. Ouvi o mp3 do concerto de final de Outubro passado no Barbican ( Londres é de facto, um centro de civilização incontornável ), onde ele apresentou em estreia o seu novo trabalho. Meu Deus! apesar da fraca qualidade da gravação, deu para antecipar que vem aí algo de sublime. Depois do absoluto I fell in love with a dead boy, de todo a resolução sexual de I am a bird now, espero que o correio me traga The crying light, no dia em que vai sair. Esperar sem desesperar.