quarta-feira, 21 de maio de 2008

As esquinas

Não gosto de esquinas. O mar não as tem e eu não passo sem a proximidade do mar. Os rios não as têm, e são lindos de ver entrelaçando qualquer paisagem. As planícies não as têm, e são o cenário perfeito para a vida sem rédeas. Só as urbes as ostentam. Gosto de muitas urbes, mas nada das suas esquinas. São contornos de prisão. À noite são sítios frequentados por almas que vendem corpos. De dia, são lugares de passagem. Mas também são montra para corpos sem alma. As esquinas ostentam pessoas que a elas se agarram na esperança de que a qualquer momento surja, precisamente ao dobrar da esquina, alguém que lhes traga um sopro de alma.
Tudo isto porque há pouco vi uma mulher à esquina de uma rua elegante. Vestia bem, com cuidado, gosto e alguma ostentação. Mas comia uma tangerina e cospia os caroços para o chão. Sem se dar conta, afastava quem queria virar a esquina.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Filantropia

A propósito dos distúrbios de ontem na África do Sul, lembrei-me de registar algumas palavras sobre alguma filantropia actual. A que tem origem em jovens milionários, que fizeram fortuna suficiente para lhes permitir encarar, sem preocupações materiais, o seu futuro. Um luxo ao alcance de poucos. Não o luxo de poder gastar ou esbanjar dinheiro. Mas o luxo de poderem viver em vida. Saboreando os dias e as noites, numa saudável perseguição dos seus sonhos.
São já muitos os ricos que aplicam as suas fortunas em projectos pessoais, mas com forte e positivo impacto para além dos seus sonhos. Falo de quem comprou vastas extensões de terras em África, reavivando alguma da mística que Hollywood divulgou há dezenas de anos, em filmes de intensidade carnal.
Na tentativa de realizarem desejos após uma vida urbanamente sufocante, alguns dos materialmente poderosos, instalaram a alma em zonas de infinita beleza, nos antípodas do ambiente onde fizeram fortuna. Ajudam as populações a alcançar limiares nunca imaginados de bem-estar: alimentação, educação, medicamentos, etc. Ajudam a que o eco-sistema não seja destruído: dezenas ou centenas de hectares, onde não deixam que a urbanidade cresça como um cancro. Vivem metade do ano em tendas porque o cimento já incomoda. São os novos filantropos a quem agradecemos o despojo material para salvar algumas partes do planeta. Haja esperança no alastrar dessas pequenas manchas mantidas em estado puro.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Frase copyright

Frase para concurso DN/RinRio ( tema pedido: sustentabilidade ) que lhes enviei há uns dias. Sem sucesso, aqui fica registada, just in case:
Má onda, surfar nas ondas do degelo; não contribua para o aquecimento global.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

o Tempo, sempre o tempo

Nada como um par de feriados para dar vida à depressão! Esta velha amiga que, ora se esconde ora aparece, tem-me visitado nos últimos dias com uma assiduidade enfeitada por um vincado sorriso trocista. Com aquele ar de quem não parte um prato, lá me vem deixando mensagens fatais.
Diz ela: Já viste quantos dias de lazer em duas semanas? Imaginas o tempo que vais poder tirar para ti? O quanto vais poder ler, ouvir e ver! os teus livros por ler, os teus discos por ouvir e ver. Enfim, montes de livros que já compraste e ainda não leste. A somar às montanhas de livros que te apetecia voltar a ler. Enfim, as pilhas de CDs e DVDs que não param de aumentar e que ainda não ou(viste). Que se juntam às centenas de discos que gostarias de voltar a ouvir e a ver. Faltam-te... mais feriados! Aliás, pensando bem, todos os livros e discos que possuis, são apenas uma parte dos livros e discos que pretendes ainda vir a ter. Parece-me que os feriados não vão chegar. Parece-me até que,... não sei se te diga... Podes nem vir a ter tempo de vida para ler, ouvir e ver tudo o queres. Pior, tudo o que já tens. Que desperdício! não conseguires gozar o que te dá tanto gozo. Lembras-te daquela sondagem aos wagnerianos? 22% já ouviram o Anel no mesmo dia! Eu sei que tu também já ouviste. Foi... há mais de trinta anos. E achas que o poderás voltar a fazer? Ah, pois, o tempo que não para de escorrer por entre a vida. Tanto desperdício de viver... em vida.
Digo eu: Viver em vida é também varrer a ansiedade e a depressão para fora de mim.
E mais não lhe consegui responder. Será que ela tem razão? Posso sempre pensar que sou vítima da sociedade de consumo. Que não consigo fugir às compras compulsivas de livros e discos, e que, no final do dia, consigo sempre seleccionar o que realmente gosto e me toca. E para o que me toca terei sempre tempo.
Diz ela, íntima dos meus pensamentos, dando-me o braço, grudada em mim, ostentando o único sorriso que consigo ver: Que mentiroso tão sem jeito me saíste!