quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Natal


Escolher Madalena é um exercício de risco. Mas só para quem se verga perante a hipocrisia. Aqui fica Madalena tal como Ticiano a viu. Sacrosensual. Como a Mulher almeja ser. Como o Homem a deseja.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Save Miguel


O Miguel é um sobreiro. Esta campanha em defesa da cortiça só peca pelo atraso que, infelizmente posicionou demasiado bem os seus concorrentes. Há muito que venho a alertar para este tema, escrevendo para a Revista de Vinhos e até para a Decanter. Cortiça sim. porque é um produto português, porque não é poluente, porque é um vedante de excepção, porque o seu elo fraco -o TCA - talvez tenha cura ( A process designed by NASA scientists to remove airborne contaminants can eliminate TCA as well. Airocide was originally developed in the 1990s to keep fruit and vegetables fresh on a space station. It has been proved in concept trials to remove 90-95% of TCA (2,4,6-trichloroanisole), which causes cork taint in wine, from a sealed room within 24 hours. The process works by sucking air through a box containing a 'bed' of titanium dioxide catalyst. This is irradiated by UV bulbs, oxidising any organic contaminants - in Decanter 11Dez08 ). Porque sim, apesar de enriquecer quem a explora, não sou invejoso. Recuso comprar vinhos com vedantes que não sejam de cortiça. E, principalmente no estrangeiro, já começa a não ser fácil. Por isso, Save Miguel.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Versão 2 do conto anterior, sempre inacabado



A
Richard Wagner


- Aceite os nossos desejos de uma boa estadia, Don Afonso!
Afonso de Coimbra agradeceu com um sorriso que o empregado interpretou como tímido. Nada mais longe da verdade: era um sorriso que brotava embrulhado num turbilhão de pensamentos e recordações. Afonso sorriu agradado pela forma como os empregados do Parador o tratavam: Don Afonso. No seu país, o tratamento Dom caíra, infelizmente, em desuso, há muitas décadas, e ele adicionava este facto ao cesto das pequenas coisas que, em seu entender, estavam a aniquilar uma forma digna de estar em civilização. Sem se considerar saudosista, uma das memórias que o visitava nestes momentos, pertencia à sua infância e referia-se à forma como algumas pessoas se dirigiam ao seu avô: Dom Manuel. Afonso, que, na altura, achava um tratamento normal, veio, com os tempos, a constatar que o Dom significava deferência pela pessoa, e hoje em dia a palavra deferência era um fóssil nos relacionamentos pessoais.
Afonso nunca se separava daquele cesto, tão cheio, de recordações que ele empunhava como estandartes de uma resistência à vulgaridade que transformava o ser humano em números. Ali, na Espanha dos Paradores, ele não era o hóspede do quarto 217, mas sim Don Afonso, a quem tinha sido entregue a chave da habitação 217. Fazia toda a diferença, mas o seu filho, quando o acompanhava em Espanha, não concordava com ele: que disparate tão grande, que vergonha a senilidade do pai, e ironizava chamando-o de Don Afonso de la Mancha, para depois encolher os ombros com indiferença consentida: qual a diferença entre Senhor Afonso e Don Afonso? Nenhuma, pai. Nenhuma? Que cegueira insensível a deste meu filho! E a Afonso restava-lhe a esperança de que a neta – meu Deus, como ele já tinha saudades da sua menina! – apreendesse o que de bom o mundo tem tido. E um dia, sem medo dos fantasmas que se penduram nos passados, ela convencesse o pai de que, ao mundo de hoje, faltam algumas coisas boas que se perderam com o nivelamento, por baixo, das pessoas. Coisas sem custos materiais. Que revelam civilidade. Recuperáveis. Assim se formasse uma geração assente em valores sólidos. E o filho, encolhia de novo os ombros, triste por ver o pai mais perto da utopia do que do bom senso realista. Mas ele, Don Afonso, viúvo e reformado, assumira como nova página da sua vida, a missão de transmitir à neta, de cativante brilho nos olhos, porque razões valia a pena viver. E nesses momentos Afonso abria o cesto e mostrava-lhe estes pequenos nadas, que ela agarrava para se sentir mais perto do avô. E Afonso sorria por ver crescer as raízes da dignidade.
Foi com este sorriso que Afonso ouviu a porta do seu quarto fechar-se, e se dirigiu à varanda. A paisagem era a mesma que encontrava todos os anos: um jardim que se espraiava por baixo dos seus pés, uma piscina imensa que transbordava de azul, mas principalmente um mar sem fim, que começava já ali, em Nerja, o balcão da Europa, e que não acabava nunca.
Afonso estava em casa. Quase feliz. Sentou-se numa das cadeiras, depois de colocar o toldo da varanda em posição que lhe tirasse o sol dos olhos. E começou a procurar sem ver. Procurava uma senhora, a dona dos seus sonhos e de uma parte da sua vida, a parte sonhada. Mas não via ninguém, apenas o desfilar de imagens de há muitos anos.
Ao longe, o mar aproximava-se dos seus olhos em ondulações imperceptíveis. E trazia-lhe este Parador, vindo de um passado intacto, de uma Nerja onde tinha conhecido Maria Duval, numa conferência de dois dias.
Ao perto, o relvado bem tratado, mostrava-lhe o interior desse Parador, como tinha ficado deslumbrado com a localização, mas, acima de tudo, fazia-lhe recordar como o destino os tinha colocado lado a lado ao jantar, depois de um dia em que, apenas a inteligência de Maria lhe tinha despertado a atenção, numa intervenção que fizera. O verde forte da relva recordava-lhe como a conversa fluíra entre ambos. Como as frases antes de começarem a ser ditas já tinham sido compreendidas. Como as horas, e não eles, devoraram o jantar. Como, num momento fatídico, olhou para a sua mão esquerda e se lembrou que era casado. Como o seu olhar fez ricochete para a mão esquerda dela. Como ambos coraram quando os olhos se voltaram a encontrar. Como naquele instante ela se levantou da mesa, desculpando-se e desejando-lhe uma boa noite. Como, de olhos desarmados, mentiu que também estava cansado, e lhe sorriu, como quem pede desculpa por existir. Meses mais tarde, Maria tinha-lhe confessado que aquele sorriso desconcertado tomara conta dela, do seu ser, da sua força para amar, do seu desejo de ser amada por ele.

Afonso mudou de roupa, para uns calções, desceu até ao relvado e passeou-se por ele, retendo o prazer do contacto com a relva, debaixo do mesmo sol de todas as primaveras vividas depois de conhecer Maria. Levava consigo um livro que havia comprado há já algum tempo, mas não tinha ainda sentido o impulso para o ler: “Viver para contá-la” do sensível Gabo. Dir-se-ia que estava à espera de qualquer coisa para começar. Olhou para o livro e, perante a sua memória, viu desfilar pela boca de Maria, um verdadeiro exército de escritores que ocuparam parte das leituras dos últimos anos. Quer de um quer de outro. Ibsen, Lorca, Duras, Yourcenar, Pessoa, Hemingway, Tennessee, Witman, Hugo, e outros de sensibilidades menos complexas, ou de que não conseguia lembrar-se, ou de que Maria não lhe tinha falado. Ou, muito especialmente, todos aqueles escritores que levaram uma vida inteira para escrever um único livro, valioso, por espelhar com sentimento genuíno vivências únicas. Mas, mas... cujo cativeiro de emoções afugentava os leitores.
Passou as mãos pelas lindas e caprichosas árvores, sentiu-lhes a vida, a sua seiva pulsava com o seu sangue e invejou-as por um segundo, só até se lembrar, quase instantaneamente, das mãos de Maria. Da primeira vez que uma lhe tocou, poisando no seu braço ao pequeno almoço, acompanhada de um “Bom Dia, posso sentar-me?” .
Com um sorriso virado para a árvore, lembrou-se de lhe ter respondido: “Claro, claro”, mas que, na realidade, o que quereria ter dito era a verdade que lhe devorava o íntimo desde a noite passada, e que não o deixara dormir: “Estava mesmo a pensar em ti!, deslumbraste-me com a tua inteligência, a tua forma de estar na vida. Nunca senti tanto prazer em falar com alguém”. Lembrava-se que conseguira, minutos mais tarde, completamente a despropósito, dizer que aquele era o melhor pequeno almoço que tomara em toda a sua vida, graças à companhia dela e ao cenário com o mar em fundo, da manhã primaveril. Lembrava-se que se seguira um silêncio, eloquentemente quebrado pelos pássaros.
E o sorriso continuava no rosto de Afonso, lembrando-se que chegaram atrasados à sessão da manhã. Que pouco falaram durante o dia. Que, no intervalo para o café da manhã, correu para lhe falar. Que Maria estava sempre acompanhada. Que se colocou entre ela e a mesa dos bolos, e distraidamente tirou um. Que nesse instante Maria fez voar a sua mão na direcção do mesmo bolo. Que as suas mãos se tocaram e o mundo parara. Que naquele instante, o universo os havia declarado um só. Que ao jantar, o anjo da guarda que no dia anterior os juntara deveria estar de folga: e que, por isso e só por isso, ficaram em mesas separadas. Que nunca comeram tão rapidamente. Que nunca ansiaram tanto pelo fim de um jantar. Que este nunca mais acabava, porque tinha discursos dos orientadores da conferência. Que foram para o bar do Parador, tentando ficar sós. E que não conseguiram. Até que a noite desceu sem piedade e Maria subiu com os colegas da empresa dela, não sem se despedir com uma súplica suspensa num último olhar.
O sorriso desvanecido de Afonso, recuperou vivacidade ao recordar que subiu ao quarto sem perda de tempo, conseguiu o número do quarto dela e quando lhe ia ligar, o seu telefone tocou e ouviu a voz de Maria: “ Queres ir ao cinema?” “Quero, vou já descer.” Ao cinema?! À uma da madrugada?! Ali? Era importante a hora? Qual hora? Importante? Importante era saciar a fome de viver com a sua alma gémea. Viver a sua alma gémea, que o tinha despertado para a vida. Viver, sem saber onde começava e acabava a sua identidade. Viver!

Ao notar que o sorriso se tinha transformado num riso, Afonso disfarçou e dirigiu-se para a esplanada do Parador. Sentou-se virado para o mar. O azul deslumbrante das águas que pareciam paradas, era salpicado aqui e acolá por pequenos barcos de pescadores. Antes do pôr-do-sol, ainda iria lá abaixo à praia. Gostava de ver os barcos no areal e absorver aquele ritmo. Indolente, porque alheio e desprovido de pressas. Sábio, por saber saborear a vida. O empregado interrompeu-o, recebeu o pedido de um xerez, cortesia a que se habituara por ter cartão dos Amigos de Paradores e deixou Afonso mergulhar de novo no seu passado:
Viu como chegaram, ansiosos, ao átrio do parador, praticamente ao mesmo tempo, e como entraram na madrugada, com dois sorrisos nervosos. Maria confessou que não sabia sequer onde era o cinema, nem fazia a mínima ideia se havia alguma sessão àquela hora. Ele quis dizer-lhe que o importante era estarem juntos, mas a boca era como se estivesse colada. Pelo caminho, nas pitorescas ruas de Nerja, foram falando de cinema. Antonioni a preto e branco, Visconti a cores, Wells, Wilder. Um cartaz afixado desviou-lhes a atenção: Sábado 21 de Março, António Ordoñez na praça de Ronda. “Hoje já é sábado”, disse Maria, com uma voz ligeiramente triste, “temos o encerramento da conferência de manhã, e a saída para o aeroporto, e...” Afonso colocara as mãos nos ouvidos, recusando acabar o sonho, até se aperceber que Maria se calara. Então, como quem muda de rua, ele começara a falar dos actores. Hayworth, Bacall, Bogart, Gardner, Garbo, Dietrich, Brando, Hoffman. Chegaram a um edifício que bem podia ser um pequeno cinema e imaginaram: eis o cinema, luzes acesas, a última sessão começa... agora. Riram, mas como duas almas infelizmente felizes! Inventaram o filme em cartaz. Inventaram que àquela hora passavam reposições e estava quase a começar... Casablanca. Calaram-se como se escutassem uma conspiração dos deuses. E regressaram ao parador. No caminho, não conseguiram falar. Atravessaram o lobby, e ouviram Sinatra. Night and Day. O ascensor abriu as portas, mas eles não se mexeram. Quando a canção acabou, Maria voltou a chamar o ascensor, marcaram piso 2 e piso 3. Ele saiu primeiro “Bons sonhos, Maria! Sei que vou adormecer a sonhar contigo.” Mas Maria não teve tempo de responder e o ascensor levou-a para o piso de cima.

A recordação do ascensor levou Afonso a atravessar o relvado até ao ascensor do parador que o conduziu até à praia. Pelos vidros, viu a praia aproximar-se. Saiu, desceu os degraus e começou a atravessar o areal. Contou doze barcos. Doze. Tantas vezes como as que o telefone do seu quarto tocou antes dele conseguir abrir a porta e pegar no auscultador. Sabia que era Maria. “ Não digas nada, Maria. Hoje é a nossa última noite e eu gostava de passar todos os seus segundos contigo.” Ela não lhe respondeu e ele voou pelo quarto fora e subiu as escadas. Maria recebeu-o descalça, mostrando os pés mais sensuais que ele alguma vez veria, pôs-lhe a mão na boca e ele abraçou-a, enquanto fechavam a porta.

Em Março, a praia estava com poucas pessoas, e Afonso, um pouco curvado sob o peso de tanta esperança, lá foi atravessando o areal, perscrutando barcos, pescadores, turistas. Olhava para as pessoas e tentava imaginar as suas vidas. Felizes? muito, pouco ou nada? O seu ânimo, como habitualmente, começava a fraquejar ao final da tarde. Enviuvara há cinco anos e esta era a quinta vez que vinha a Nerja, sempre no dia 21 de Março. Todos os anos vinha carregado de uma esperança cheia de vida, mas acabava por partir com um desalento que o prostrava durante semanas. A ponto de achar doentia esta peregrinação anual. Depois, a pouco e pouco, retomava as leituras, ouvia a música que lhe falava ao coração e começava a acumular novas energias e esperanças para o próximo ano. Se fosse vivo!, sublinhava a sua face racional. Cada ano com mais força.

Ao longe viu uma figura que lhe fez bater forte o coração, mas bastaram dois passos para desfazer o equívoco. Afonso fazia, uma vez mais, o balanço da sua vida, sem se arrepender das decisões tomadas. Fora casado. Um casamento “normal” na sua classificação. Um filho de que se orgulhava. Uma neta em quem depositava a esperança no futuro. Alguns anos depois de casar, conhecera a sua paixão no Parador de Nerja. Conhecera-a ali, naquela atmosfera, naquele mar, naquela areia, naqueles seixos tão arredondados pelo tempo. Já não era jovem, mas vivera-a tão intensamente, como a chama consome um fósforo. Encontravam-se sempre que podiam, amavam-se como se mais ninguém existisse no mundo. Mas existia. Ele e Maria teriam de tomar opções. Embora com a dor esmagada nas entranhas, sentiram-se orgulhosos da decisão tomada. Ambos com filhos e casados, não conseguiriam construir a sua felicidade sobre a infelicidade de quem amavam. Não conseguiriam voltar a falar-se, e muito menos a ver-se, pois a úlcera da paixão estava aberta e precisava fechar-se, encerrando no seu casulo o amor vivo e só assim intacto. Na despedida, o nó que Afonso tinha na garganta, deixou passar, quase inaudível, um juramento, feito ao rubro, olhos nos olhos: “Somos gémeos, como Sieglinde e Siegmund, e por isso, por muitos quilómetros que existam entre nós, nunca estaremos separados. Se um dia, o que hoje me faz decidir fechar o livro antes do fim, deixar de fazer sentido, eu Afonso de Coimbra, voltarei a abri-lo e esperarei por ti, Maria Duval, no Parador de Nerja no dia vinte e um de Março de todos os anos, até que tu também sintas condições para voltar a abrir o livro, ou até ao dia em que as forças do sopro da vida me abandonarem. Amen.”

Uma ligeira brisa começava a levantar-se, anunciando o pôr-do-sol e secando uma lágrima fugidia nos olhos de Afonso. Olhou para o livro e, com uma expressão de absoluta serenidade, como entoando uma oração, mudou-lhe o título: “Viver para vivê-la”. O sorriso que esboçou, quando entoou mentalmente o novo título, era de esperança conformada.
Com o escorrer dos anos pela sua vida, Afonso passou a valorizar, cada vez mais, os momentos que conseguia passar consigo mesmo, aprendeu a colocar a dor no altar das coisas que eram assim porque eram assim, porque eram de Deus. Num daqueles momentos, passados neste mesmo Parador, debruçado para a praia, a mesma praia que agora o observava, escrevera umas palavras que manteve junto a si desde então. Tirou um papel pequeno da sua carteira, dobrado, com vincos de cor acentuada pelos anos, desdobrou-o e leu devagar, como se quisesse dar tempo ao tempo, para lhe trazer o resto dos seus dias.

O jardim

Hoje, como há precisamente um século,
Percorro, descalço, o meu jardim
Piso o chão que ainda cheira a ti
Abraço qualquer árvore, planta, tubérculo
Cometo o pecado de te colher para mim.

Hoje, transportada pela volúpia sem fim,
Percorres, descalça, o teu jardim
Atrais-me e eu saio de dentro de mim
Para entrar com prazer na tua escuridão
E iluminar-te de amor o coração.

Hoje, como há precisamente um século,
Percorremos, almas gémeas, o nosso jardim
Criamos ambientes que nos aproximam
Recusamos as evidências que nos afastam
Castigados pela memória de nele passear.

Hoje, como no princípio dos tempos,
Lembramo-nos do jardim
Onde a beleza recusa abandonar o teu rosto
Onde a certeza de que o nosso amor existe
Nos alivia da memória que teima não ter fim.
E persiste.

Sempre que lia aquelas palavras, Afonso, arranjava forças para manter a esperança de viver, nem que fossem os últimos dois dias da sua vida, acompanhado pela sua paixão. E conseguia sorrir, como quem diz: ainda não estou velho! Posso esperar outro ano, e outro!...
A noite ia pedir um agasalho. Estremeceu com os arrepios que o percorreram. Não de frio, mas porque, de vez em quando, um pensamento negro atravessava-lhe o corpo, rasgando-lhe a alma, tirando-lhe bocados de vida: e se Maria já tivesse morrido? E Afonso recompunha-se, com o mesmo sorriso de sempre: Maria estava tão viva quanto ele, pois assim o sentia.
A praia estava já deserta, quando se dirigiu para o ascensor que o devolveria ao Parador. Rodou a chave para o chamar e esperou que a cabine descesse olhando fixamente para as paredes envidraçadas da porta. Pela primeira vez desde que chegara a Nerja, a sua cabeça não pensava, não recordava. Estava simplesmente à espera de um ascensor, via os cabos mexerem-se, depois a base do elevador que se aproximava, e dentro dele, uns sapatos rasos, umas pernas que bem poderiam ser..., uns joelhos como só conhecera os de .... e Maria com os olhos marejados e um sorriso nervoso.
O ascensor demorou uma eternidade a imobilizar-se. As portas abriram-se, ele quis entrar, ela quis sair, e o abraço que os uniu ouviu as palavras esmagadas pelas suas bocas unidas:
“Siegmund”
“Sieglinde”

E outro Conto, também para registo


Não sei contar estórias, mas esta passou-se há poucas semanas e encerra em si uma alegria robusta que me apetece soltar a todos os ventos.
Aconteceu na praia dos Gambozinos, um lençol de areia e rolinhos de pedra numa baía fantástica para onde Sagres se debruça. Um mar português, a quem tanto o mundo deve, e que permanece todos os anos igual. A algumas centenas de metros uma ilhota rochosa sobressai como um monumento natural, lembrando os navios que há cinco séculos atrás a bordejavam.

Tudo começou há mais de trinta anos. A empresa onde eu trabalhava organizou uma conferência internacional sobre os recursos naturais, que teve lugar num hotel de Sagres. Aí conheci uma senhora alemã, cujo fervor criativo na defesa dos recursos naturais me impressionou. Num dos intervalos dos trabalhos, pediu-me para lhe emprestar o meu carro, pois desejava visitar ao fim da tarde a extremidade oposta da baía. Ofereci-me para a conduzir. As horas passaram sobre nós e trouxeram a noite sem que disso nos apercebêssemos. Eu nunca tinha sentido tanto prazer em conversar com alguém. No dia seguinte, procurámo-nos insistentemente e apercebemo-nos de que algo mais estava a nascer entre nós. Ambos éramos casados, tínhamos uma vida familiar estável, e tentámos reprimir o relacionamento. Nessa noite era o jantar de despedida. Procurámos mesas separadas. O jantar começou com uma sopa de santola, e não me lembro do que me serviram a seguir, pois não toquei em nada. Os nossos olhos cruzaram-se vezes sem conta e notei que ela também nada tinha comido. Senti que nos debatíamos nos suores de um dilema.
Martirizei-me com cenários, ensaiei frases, e regressei à realidade com as palmas ao último discurso. Olhámo-nos e simultaneamente dirigimo-nos para a saída. Vamos à praia dos Gambozinos, sugeriu ela. Fui buscar as chaves do carro, mas antes passei pela cozinha e pedi para me arranjarem pão, queijo de Serpa, uma garrafa de vinho tinto, um saca-rolhas, uma faca e dois copos.
Sentados naquele areal tão igual ao de hoje, não sabíamos o que dizer, e o luar que nos iluminava parecia condenar o nosso encontro. Então deu-se o milagre, as nossas mão dirigiram-se ao mesmo tempo para a tampa do cesto e... tocaram-se.
Eram 6 horas daquela manhã de Julho, a claridade já tinha rasgado a madrugada, e nós tínhamos comido quase tudo. Do saboroso vinho restavam apenas alguns aromas na garrafa. Tínhamos decidido não nos voltarmos a falar, e muito menos a ver, pois a úlcera da paixão estava aberta e precisava fechar-se, encerrando no seu casulo o amor vivo e só assim intacto. A sua voz disse-me: “Sempre que ouvirmos Wagner estaremos juntos”. Na despedida, o nó que eu tinha na garganta, deixou passar, quase inaudível, um juramento, feito ao rubro, olhos nos olhos: “Somos gémeos, como Sieglinde e Siegmund, e por isso, por muitos quilómetros que existam entre nós, nunca estaremos separados. Se um dia, o que hoje me faz decidir fechar o livro antes do fim, deixar de fazer sentido, voltarei a abri-lo e esperarei por ti, neste mesmo areal no dia 12 de Julho de todos os anos, até que tu também sintas condições para voltar a abrir o livro, ou até ao dia em que as forças do sopro da vida me abandonarem. Amen.”

No passado dia 12 de Julho, a praia estava com poucas pessoas, e eu, um pouco curvado sob o peso de tanta esperança, lá fui atravessando o areal. Era fácil arranjar um poiso isolado. O dia prometia calor. Abri o meu cesto e tirei uma garrafa de vinho tinto, arranjei um seixo grande e atei-o a ela, enterrando-a parcialmente à beira-mar. Assim ia controlando a temperatura, ora aproximando das ondas ora afastando. A meio da tarde o meu ânimo começou a fraquejar. Enviuvara há cinco anos e esta era a quinta vez que regressava aos Gambuzinos. Sempre no dia 12 de Julho. Todos os anos vinha carregado de uma esperança cheia de vida, mas acabava por partir com um desalento que me prostrava durante semanas. A ponto de achar doentia esta peregrinação anual. Depois, a pouco e pouco, retomava as leituras, ouvia a música que me falava ao coração e começava a acumular novas energias e esperanças para o próximo ano. Se fosse vivo!

Em cada um destes cinco anos tinha sido assim. Chegava aos Gambozinos com um cesto com pão, queijo de Serpa e uma garrafa de vinho tinto. Ao fim da tarde, começava a refeição. Sozinho. À minha frente passava invariavelmente o filme de uma outra noite. Que seria feito dela? Conhecera-a ali, naquela atmosfera, naquele mar, naquela areia, naqueles seixos tão arredondados pelo tempo. Alta noite, regressava ao carro e ia-me embora.

Este ano, a tarde trazia uma ligeira brisa. A noite ia pedir um agasalho. Estremeci com os arrepios que me percorreram. Não de frio, mas porque, de vez em quando, um pensamento negro atravessava-me o corpo, rasgando-me a alma, tirando-me bocados de vida: e se ela já tivesse morrido? Mas recompus-me, com o mesmo sorriso de sempre: ela estava tão viva quanto eu, pois assim o sentia.

A praia estava já deserta. Estendi uma toalha que segurei com seixos nas pontas. Linho, seixos e areia. Sorri. Dispus o queijo numa tábua, o pão alentejano num cestinho de prata e tirei os dois copos que levei devidamente acondicionados. Pela primeira vez desde que chegara aos Gambozinos a minha cabeça não pensava nada, não recordava nada. Estava simplesmente a pôr uma mesa para uma refeição.
Olhei para o céu e calculei que restavam umas duas horas de sol. A água do mar ainda estava apetecível e decidi dar uns últimos mergulhos. Enquanto me refrescava tentei calcular a temperatura da água. Talvez 18 graus. Temperatura perfeita para aquele vinho. Saí da água, sacudindo os braços, de olhos baixos para agarrar a garrafa. No seu lugar uns pés desnudados. Ergui a cabeça, a tremer. Uma senhora, provavelmente tão envelhecida quanto eu, mas que ostentava um sorriso, provavelmente tão nervoso quanto o meu, segurava, junto ao coração, a garrafa.

O abraço que nos agarrou ouviu as palavras esmagadas pelas nossas bocas unidas:
“Siegmund”
“Sieglinde”

Um conto,... escrito, publicado e premiado, há um par de anos


As minhas amigas lá me foram prevenindo sobre a insólita característica que acompanha o estado de gravidez da maior parte das mulheres: bizarros e incontroláveis desejos de comida. Com exemplos: fulana só queria comer cascas de laranja. Arrrgh! Beltrana desejava figos de capa rôta... em Janeiro. E eu, franzindo a testa, sorria de incredulidade. Verás! lá mais para o Verão, diziam-me elas. Avisadamente. A sentença estava lavrada, as minhas férias de Verão seriam um amontoado de dias atacados por estranhos desejos tão difíceis de satisfazer como encontrar um Maybach no parque de estacionamento de um hipermercado.

As semanas passaram, a barriguinha começou a mostrar-se e, absorvida por tanta alegria e tantas compras que eram sonhos concretizados, lá fui esquecendo aqueles avisos.

Trabalho na baixa lisboeta e um dia, entro numa pastelaria e oiço-me a pedir... uma francesinha. Isso só no Porto, minha senhora.
Caí em mim, esqueci-me da fome, e fui para o escritório. O trabalho deve ter-me distraído, pois só voltei a pensar no assunto a caminho de casa, quando voltou a apetecer-me uma francesinha. O meu marido entretanto chegou e fazer as malas para a nossa quinzena de férias no Algarve voltou a distrair-me.

Nessa noite não consegui adormecer. O meu pensamento visitava, uma a uma, as conversas avisadoras das minhas amigas sobre os desejos das grávidas. Não havia precedentes sobre francesinhas. Estava a acontecer-me! Estava apanhada pelo síndroma do desejo da grávida. Meu Deus, não poderei ultrapassar isto com racionalidade? O meu marido mexeu-se. E se eu lhe pedisse para interromper as férias a meio e darmos um pulo até ao Porto?

Foi uma noite em que conheci de perto o pânico. A angústia alojara-se definitivamente na minha almofada. O meu marido detesta francesinhas, e tínhamos as noites todas planeadas para jantares que fossem marcos gastronómicos. Como é que eu lhe haveria de dizer que preferia uma francesinha a um vol-au-vent de marisco e peixe?

Conheci o meu marido numa roda de amigos à volta da mesa. Era um grupo que planeava os sábados, de forma rotativa, em casa de cada um. O anfitrião cozinhava, escolhia os vinhos, e no fim aguardava em sofrimento a pontuação dos restantes convivas. Pontuava-se o arranjo da mesa, a entrada, o prato principal, a sobremesa, o vinho escolhido para cada etapa, e, finalmente, a harmonia do conjunto.
Aquele que é hoje o meu marido, pretendia dilatar o âmbito da pontuação para que esta abrangesse o café, o Porto e o charuto. No seu purismo e perfeccionismo, aceitava que não fossem pontuados os maltes.
Estão agora a ver com quem eu casei! Não é de admirar os calafrios e os horrores que me percorreram nessa noite.

Só que, o pior estava para vir. Na viagem para sul, parámos numa área de serviço da auto-estrada. Pedi uma francesinha, em voz baixa, mas o meu marido ouviu-me. Ergueu o sobrolho e esperou que eu repetisse o pedido. Saiu-me um café com leite e um pastel de nata, no meio de um sorriso nervoso. O incidente passou, mas à noite, sentados no terraço do restaurante, com a carta de refeições aberta a vinte e cinco centímetros dos meus olhos, eu não conseguia ler coisíssima nenhuma. Tudo o que eu queria era uma simples francesinha.
Pedi ao meu marido para escolher por mim. Estranhou e quis saber o que se passava. Contei-lhe tudo. Dos desejos mais disparatados das grávidas. Mas que deveriam ser encarados como absolutamente normais. Engraçados até. Tradicionais, como os pratos que ele às vezes confeccionava e que até saíam bem.
Como a escolha estivesse demorada, o meu marido pediu um “chip dry”. Ou seria para arranjar coragem de não me interromper? E lá lhe contei do dia anterior, na pastelaria. Ele fez Ah! E nessa exclamação percebi que estava a ver-me na área de serviço e me considerava tontinha. Estás cansada, dizia-me ele, um carabineiro e um salmonete grelhado vão devolver-te a serenidade, nesta noite tão bonita. Acho que sim, disse eu. Mentira, não achava nada. Qual carabineiro qual salmonete, o que eu queria mesmo era uma francesinha.

Enquanto esperávamos, o meu marido tentou abordar psicologicamente a questão dos desejos. Tudo influência das coisas que as mulheres contam umas às outras. Estás a insinuar que eu sou influenciável? E abri-lhe os olhos. Ele corrigiu para a susceptibilidade e hipersensibilidade a que está sujeita uma mulher grávida, e por isso permeável a sugestionar-se com tudo o que lhe pareça normal e bom para o seu bem-estar e o do bébé.

Notei o alívio da sua expressão quando trouxeram os carabineiros. Confesso que também senti um certo alívio com a possibilidade de desanuviar a conversa, mas o meu marido provocou-me logo de seguida. Estão óptimos, fresquíssimos, com os sucos no ponto, disse ele. Estão secos, não me sabem a nada, disse eu e apenas comi uma ínfima parte. Tínhamos pedido um Alvarinho, que estava esplêndido, mas o meu marido sabendo que eu aprecio melhor uma refeição com um tinto ao estilo “Novo Mundo”, atribuiu a minha falta de apetite a esse factor e tentou corrigi-lo a tempo. Rejeitei o tinto alegando que estava acima da temperatura a que deveria ser servido. Apesar do balde de gelo do Alvarinho ter albergado o tinto, nada feito. Amuei.
O jantar estava a ficar estragado. O meu marido ausentou-se por minutos. Continuámos calados até nos arranjarem o salmonete para os nossos pratos. Desta vez, ele, ao ver que eu mal tocava no peixe, evitou qualquer comentário apreciativo sobre o seu estado, e disse-me olhos nos olhos: não te esqueças que tens de alimentar o bébé.
Que bem me soube o salmonete, e lá me desculpei com as saudades de um bom sabor a mar. Até que veio a carta das sobremesas. Pedi um gelado. O meu marido fez aquele sorriso matreiro de que tanto gosto e veio um prato com meia fatia de pão, meia salsicha, meio bife, um ovo estrelado, encavalitados em mais qualquer coisa que não me lembro... Juro que devorei aquela sósia de francesinha com o maior deleite e os olhos húmidos.

Viagem no tempo










Penso que todos nós vivemos a nostalgia daquela viagem que nos deixou impressões mais profundas. É até legítimo o desejo de repeti-la. Ora comigo existe uma outra nostalgia que me invade com inusitada frequência: por uma viagem impossível de repetir.
E dou por mim a sonhar com aquelas viagens de comboio - muitos chamavam-lhe Maria Fumaça - que eu fazia com o meu avô pelo Douro. O meu avô que me pegava ao colo para eu ocupar um lugar desaconselhável no peitoril da janela, onde eu absorvia o cheiro do comboio a vapor e me deliciava com o fumo que via nas curvas; de onde eu via passar o filme mais bonito do mundo: o rio, as quintas, as vindimas, a labuta das jornadas de sol a sol, e na carruagem toda uma banda sonora feita de vozes alegres que diziam coisas que eu não percebia, acompanhadas de risadas sonoras misturadas com a estridência das gaitas de beiços e o piar dos frangos transportados em cestas de vime. Ao longe o som do sino duma igreja provocava fome naquela gente. Feliz à sua maneira, mas feliz. E era um abrir de açafates forrados de onde saltavam cheirinhos que calavam a vozearia. Todos bebiam daqueles garrafões de vidro forrados de vime, e logo o calor da conversa subia de tom e entrelaçava-se com gargalhadas que os transportavam até ao sono igualmente sonoro.
Eu lutava por vencer o sono mas não conseguia. Que pena, pois hoje lembrar-me-ia de mais pormenores destas viagens impossíveis de repetir.

Ficou o fascínio pelos comboios a vapor. Enfim, sem aquele cheiro enebriante.

Impromptu


Abri o blogue para escrever sobre uma viagem que me veio à memória e saltaram-me aos olhos os dois Turner. Lindos. Vou passar a colocar mais fotos no blogue. Fica a faltar a Música. Com mais tempo, talvez. Para já, um Sisley. Para sonhar.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Turner




Sim, é o Temeraire, sim, é o Grande Canal, sim, é o Mar, é o Fogo, é a Terra, é o Ar. Sim, são todos os Elementos unidos. Podiam ser quaisquer outros lugares, quaisquer outras visões,... desde que pintados por Turner. Falariam comigo, tal como os seus quadros na Tate, na National, ou aquele que vi em Filadélfia, me fizeram estremecer quando os vi olhos nos olhos. Tal como, alguns dos seus quadros já não cabiam nos meus olhos e passaram-se para todo o meu corpo, arrepiando-me, à medida que me penetravam. Os génios não deviam morrer, pois não?

Depois do Natal

Antony! The crying light! Só vai sair depois do Natal. Ouvi o mp3 do concerto de final de Outubro passado no Barbican ( Londres é de facto, um centro de civilização incontornável ), onde ele apresentou em estreia o seu novo trabalho. Meu Deus! apesar da fraca qualidade da gravação, deu para antecipar que vem aí algo de sublime. Depois do absoluto I fell in love with a dead boy, de todo a resolução sexual de I am a bird now, espero que o correio me traga The crying light, no dia em que vai sair. Esperar sem desesperar.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Cartas de Amor escritas na areia...

Porventura vou surpreender-te quando receberes esta carta. Hoje em dia, ninguém escreve cartas de amor. Basta falar, curtir, estar na boa. Mas eu sempre tive este desejo: o de registar fisicamente o que os meus olhos dizem aos teus, quando falamos empolgados sobre qualquer assunto, quando as nossas peles se tocam, quando descobrimos coisas novas que nos provocam arrepios. Juntos. Quando somos nós. Nós.
Hoje, sinto esta urgência de te escrever. Sinto esta vaidade, de que vais ter nas mãos que me acariciam, o que a minha mão pôs neste papel. E o que eu corri para arranjar este papel, amarelecido, que parece papiro! Para resistir ao tempo, para além de nós. Escrito com tinta permanente. Permanente.

Preciso dizer-te o quanto penso em ti. E penso tanto! Muitos disparates, sobre os porquês de não passarmos um sem o outro. Muitos diálogos imaginados sobre coisas que me esqueci de te dizer. Sabes? Quando estou longe de ti, dá-me prazer imaginar as tuas reacções sobre as coisas mais comezinhas que penso. E são horas a fio! Não te zangues muito, eu continuo a ter cabeça para as minhas obrigações. Sei que te podia telefonar para o móvel, mas perdia toda a magia. E desse prazer não abdico. Claro que te telefono muitas vezes durante o dia! Mas é apenas para te ouvir respirar.

Hoje, escrevo-te para fazer a ponte entre o passado que guardo na memória e o futuro que quero viver. É mais uma das tantas pontes que nos unem. Como os cheiros são pontes. E eu faço batota, prolongo pontes. Guardo o teu cheiro nas costas da mão esquerda, e levo-a ao nariz vezes sem conta, até o cheiro passar a existir apenas na minha memória. Nestes dias em que o sol se põe mais cedo, vou para a rua e deixo-o prolongar a minha sombra na tua direcção, até ela se tornar difusa e eu imaginar que já toca na tua própria sombra.

Não acredites no que os médicos nos disseram. Não te atrevas a desistir de lutar. Tenho planos, para fazer com que esses olhos brilhem com toda a intensidade que o mundo jamais viu. Quero alugar um teatro, só para ti, para declamar toda a poesia feita ao longo dos séculos entre apaixonados. Depois, quero comprar o tempo de antena de todas as rádios e televisões para contar ao mundo tudo o que sei sobre a doçura que te envolve. Para que o mundo me ajude a afastar esta amargura que sinto de não saber se estou perto, ou longe, do limite da capacidade de amar.

Regresso agora às memórias que trago de ti, desde o ofegar da intimidade até ao som puro da tua forma de rir. No fundo, escrever esta carta é profanar a tua individualidade. Mas, se não escrevo rebento. Possuído que estou do pavor de te perder. Tenho esta horrível premonição de que amanhã, quando te for visitar ao hospital, não tenhas forças para segurar esta carta. Desculpa, também eu tenho uns momentos de fraqueza.

Imagina! O telefone está a tocar, e não me apetece atender. Até o som do seu toque, ecoando nesta sala vazia de ti,...

… Retomo a escrita destas últimas linhas com um nó na garganta. Passaram, não sei quantas semanas desde que, com uma alegria adolescente, decidi escrever-te uma carta. De amor. Um nó que não mais me largou, desde que te vi naquela cama, tu e ela, muito brancas, chão, paredes, tecto, branco por todo o lado, e os teus olhos, bóias sobressaindo naquele mar branco, húmidos numa luta para se manterem abertos. À espera de me verem pela última vez, para depois se fecharem. Um nó que recebeu o teu último suspiro pelos meus lábios. Um nó que eu desejei me asfixiasse quando escondi a minha boca nas tuas mãos, que depois agarrei com as minhas, para que elas não arrefecessem. Um nó invisível que se mantém dentro de mim, barragem fraca demais para segurar estas lágrimas que teimam em forçar o caminho por este rosto abaixo. Um rosto que sinto envelhecer hora a hora. Nunca me tinha apercebido que os dias têm tantas horas. Todas incómodas, longas, vazias, más de viver. As piores horas são as que conto depois dos cães adormecerem. Noite fora. Noite dentro. Noites de desolação. Durante o dia, a angústia suaviza-se. Os cães pedem-me para lhes fazer companhia, com uns olhos tão meigos. Sinto que o fazem para me distrair. De vez em quando, vejo-os a olhar um para o outro. Muito parados, deitados frente a frente. Longos minutos na mesma posição, como estátuas. Depois levantam-se e correm até ao nosso quarto. E quando voltam, vêm, vagarosamente, de cabeça descaída, até ao pé de mim, onde me encontram já a soluçar.

Mas não te preocupes, nós vamos ficar bem. Só tenho de aprender a viver contigo, sem ti.
Vou dobrar esta carta e colocá-la na tua última morada, dentro do vaso onde repousam as cinzas da parte de mim que mais amo.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Chorar

Não é que seja exactamente o contrário de rir, mas anda por perto. Excluindo quem chora a rir, vou concentrar-me naquelas almas que, ao invés de viverem, sobrevivem. Tropecei no blog de Godin e aqui vai excerto para meditar:
The single most important marketing decision most people make is also the one we spend precious little time on: where you work.
Think about this for a second. Your boss and your job determine not only what you do all day, but what you learn and who you interact with. Where you work is what you market. Work in a high stress place and you're likely to become a highly stressed person, and your interactions will display that. Work for a narcissist and you'll develop into someone who's good at shining a light on someone else, not into someone who can lead. Work for someone who plays the fads and you'll discover that instead of building a steadily improving brand, you're jumping from one thing to another, enduring layoffs in-between gold rushes. Work for a bully and be prepared to be bullied.

Dá vontade de chorar não dá? Simplesmente porque, a livre escolha de empregador e/ou emprego, choca furiosamente com várias condicionantes. Coisas de que não se quer abdicar. Por isso, há que pensar bem nas opções que se vão formulando. E ter a coragem de escolher, aceitando as consequências. Dá vontade de chorar, mas ri melhor quem ri por último. Caso contrário, corre-se o risco de levar a vida a chorar. Pior ainda, sem vontade de rir.

RIR

Rir! Diz a sabedoria popular que Rir é o melhor remédio. Sem mais. E se alguém perguntar "Remédio para quê?", esse alguém está mesmo doente. Doente de quê? Pois!... como costumava dizer a minha avó, que tanto gostava de falar. Pois!
Hoje vem uma notícia no Irish Times que reza assim:
A GOOD laugh will do just as much for your health as a mini-workout in the gym, a pioneer in the field of humour said yesterday.
US academic Dr Bill Fry told students at University College Cork that 20 seconds of intense laughter can double the heart rate for three to five minutes, a feat that would normally involve rigorous exercise.

According to Dr Fry, laughter may help ward off heart attacks by easing tension, stress and anger. It may also help prevent the circulatory sluggishness that leads to strokes, and lessen the discomfort of people suffering from cancer.
He has suggested that laughter may even help prevent cancer by relieving depression, an emotional state that may make people more susceptible to the disease.

A sabedoria popular de mãos dadas com a ciência. Esta, claro, sempre atrasada.
Convém não esquecer que, também se morre a rir. O que não deixa de ter a sua piada. E na placa funerária, em vez de RIP, porque não desenhar uma perninha no P? Pela saúde dos que cá ficam.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A blogosfera - um pequeno conto

Era uma vez... alguém que queria escrever para ganhar dinheiro. Com a mente em branco, não conseguia produzir ideias, não era capaz de alinhar raciocínios num todo coerente e as palavras não lhe saíam. Um dia, de braços caídos no precipício do desespero, teve, finalmente, uma ideia que achou brilhantemente exequível: visitar toda a blogosfera à procura das ideias dos outros. Porque não, das palavras dos outros. De facto, a blogosfera é um mundo sem fim de ideias, opiniões, prosas e poemas, com autores pouco ou nada identificados. De portas abertas, à espera que a visitem. Convite ao plágio descarado, pois a ocasião faz o ladrão. Alguém se importa?
Sim, mas... Mas, como pode algum blogger sentir-se roubado, se o simples facto de aceitar escrever neste open space implica aceitar as visitas de indesejáveis amigos do alheio, pouco ou nada identificados?
Não escrever o que lhe der na veia, implica inutilizar este meio tão prático de registar, arquivar, aliado ao gozo relativo de ver uma extensão de si na net, ou de ver alguém dar-se ao incómodo de comentar.
Era, então, uma vez... alguém que queria escrever para ganhar dinheiro. Um dia...

Alto! Mais não escrevo pois pode haver por aí algum escritor, a quem tenham roubado o computador com os seus textos sem backup, e que venha para aqui inspirar-se à minha custa.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

O Anel... parte 3

Felizmente a mudança de direcção no TNSC não cancelou as duas últimas partes do Anel. Pelo terceiro ano consecutivo, esta encenação genial de Graham Vick marca presença no deserto operático de Lisboa. Ia escrever Portugal, mas tive um acesso de pudor. Porém, este ano, existe uma alternativa universal e grátis para ver e ouvir o Siegfried: no site saocarlos.pt, ensaio já hoje, a partir das 18.30. Transmissão final dia 12, 16h. A rtp2 há-de transmitir um destes dias, lá mais inverno dentro. Mas nada que pague a possibilidade de estar lá dentro, e sentirmo-nos parte de um evento histórico.

Heimat

Heimat é, para mim, o Filme. Ponto final. Vem este despropósito a propósito da evocação que alguém nesta blogosfera fez sobre Brel e a sua imortal súplica "ne me quitte pas...". Fico sempre lamecha, quando me sabem tocar. E lembrei-me do Heimat, que estou a rever há semanas e ainda só vou a meio. Trata-se de uma crónica de enganos e desenganos, de princípios e fins, de juventude e envelhecimento. A palavra Heimat não tem uma tradução exacta em português, mas significa algo como uma mistura de raízes, origens, terra natal. Para mim é o cantinho que conseguirmos encontrar para nos refugiarmos das tempestades da vida. A ele quereremos voltar sempre, seja qual for o motivo ou a desculpa. Em Heimat sentir-nos-emos sempre seguros e confiantes. Os valores que nos foram transmitidos estão todos lá. Em Heimat, nós somos nós. Por isso o "ne me quitte pas..." me fez lembrar o Heimat ( nem sempre físico ) onde me aninho para acreditar que "tudo vale a pena, se a alma não é pequena", e para sonhar com um Heimat físico, onde a realidade possa ser acariciada.

Brel viveu em vida

Logo pela manhã, uma notícia ajudou-me a despertar: Brel morreu há trinta anos. Um homem de latitudes intemporais, poeta de mãos dadas com o músico, interpretando-se como se a vida deixasse de ter sentido após as últimas notas de cada uma das suas canções. Quando a doença o matou, a mulher e os filhos não se opuseram a que o seu corpo regressasse àquela ilha da Polnésia Francesa, onde tentou viver em vida, sem as interferências da sociedade-espectáculo.
RIP

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Fundos de investimento ao fundo

Depois dos tiros nos porta-aviões financeiros, é legítima a suspeita de que hajam tiros invisíveis nos fundos de investimento. Estes instrumentos financeiros, apesar dos limites por categoria de risco que lhes possam ser inerentes, devem estar a albergar muito do lixo que intoxica os mercados. Como princípio de acalmia de mercado, terá pequenas virtudes, como qualquer empregada que varre o lixo para debaixo do tapete. A coisa fica mesmo feia quando os subscritores do produto vêem a desvalorização tomar forma. Mais uma vez, o supervisor financeiro deveria tomar medidas restritivas daqueles movimentos, mas parece que a fuga para a frente tomou conta das decisões. E, suspendam a norma contabilística de reconhecimento do justo valor. Ou explicitem o que deve ser considerado justo valor, por forma a que a regra seja válida tanto para tempos de euforia como de crise. Quem vier atrás que se cuide, pois poderá não haver luz para apagar.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

a crise das crises?

Só mesmo porque estou farto desta mãe de todas as crises:
Porque é que os reguladores / polícias de mercado não pedem explicações aos Auditores, e acima de tudo, às sociedades de rating, que andaram a distribuir notações positivissimas ( algumas iguais à da nossa República ) a instituições financeiras, a fundos sem fundo, que, quando começaram a cair em desgraça, foram oportunisticamente downgraded to junk, por essas mesmas sociedades de notação?
Quem é que confia em produtos estruturados indexados aos resultados do campeonato do mundo de futebol? quem é que coloca as suas poupanças em hedge funds que apostaram na queda contínua da cotação dos bancos irlandeses?
Apostas no sector financeiro? Roleta, bacarat, gamão,... ganância. E os casinos deixam que lhes roubem o negócio? Casinos de todo o mundo uni-vos e comecem a conceder crédito a toda a gente. A oportunidade está aí e foram os bancos que vos abriram a porta...
De facto, a tradição já não é o que era!... Chamar a estes momentos a crise das crises é pouco.
Este mundo anda mesmo muito mal frequentado!

terça-feira, 23 de setembro de 2008

A idade das coisas... Coisas da idade!

Ontem vi umas fotografias actuais de sítios que há muitos anos não visito. Podiam ser de pessoas que há muito tempo não vejo, podiam ser de coisas que há muito tempo não procuro, a conclusão seria a mesma: a idade não tem travões e só o atrito a faz parar. Se este atrito é certo, e a ele se convencionou chamar envelhecimento, não é menos verdade que a consciência que dele vamos tendo, condiciona o nosso bem ou mau estar. Ontem, depois de ver as ditas fotos, e de concluir que os sítios estavam tão diferentes das imagens que deles guardei há tantos anos, caí com brusquidão naquele pensamento recorrente sobre o tempo que nos foge; ou pior ainda, sobre o tempo que passa por nós sem que nos apercebamos dos sítios, das pessoas, das coisas, que deixámos de visitar e por onde o tempo também passou. Não tanto por nos sentirmos mais velhos, mas sim porque deixámos de usufruir, de gozar o prazer da sua presença física. E isto sim, entristece. Por isso, a palavra de ordem deve ser sempre carpe diem! Aproveitar os dias! Para evitar tristezas, remorsos e outros sentimentos que nos poluem os dias.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

O sistema financeiro em trânsito

A sequência de portas a fechar é notável. Assusta mesmo, a ponto de esta crise estar a destronar a de 1929. Faltam os porquês. E eles estão à nossa frente: ganância, crescer descontroladamente, pintar resultados a tinta dourada com números de plástico, que derretem ao menos aquecimento global. A pressão tem corrido desalmadamente em ruas sem sentido ou em contramão nas de sentido único. A pressão pelo desempenho tem atingido níveis inqualificáveis de exigência e transita naquelas ruas, de accionistas para gestores, destes para empregados, destes para clientes, destes para accionistas, e em outras combinações.
Desde há quase 20 anos que me lembro da progressiva importância nas empresas, em particular nas financeiras, das funções de controlo e compliance. Pois sim, invenções de consultores, passadas para supervisores, passadas para gestores, passadas para accionistas. Outra vez as ruas sem sentido. Não se pode falar só de 2008, desde o Northern Rock, Bear Sterns, Roskilde, Fannie Mae e Freddie Mac, até à Merrill Lynch e agora Lehman Brothers. Vem tudo de trás. Vem do rebentar daquela pressão, vem dos acidentes provocados por andar em contramão, para satisfazer exigências impossíveis de desempenho ou sem orientação estratégica coerente. As finanças transformaram-se num jogo, envolvendo as economias, criando um mundo de faz de conta sob o olhar dos controladores. Que olhavam para os semáforos, sem ver se o trânsito lhes obedecia. Pois é, a seguir vêm as seguradoras, último reduto do faz de conta, arbitrar o caos, engolir o apito e desmaiar por falta de oxigénio. Pescadinha de rabo na boca. A crise veio para ficar durante muitos anos. Porque este é apenas um aspecto da perda de valores que se verifica na sociedade.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

LHC e a busca da partícula de Deus

Como é possível que este projecto LHC ( Grande Acelerador de Hadrões ), que hoje vai começar a funcionar oficialmente, tenha sido mantido afastado dos olhos e ouvidos do mundo. Para mais, tendo-se começado a sua construção há 10 anos atrás... Um projecto de envergadura tal que conta com a participação de 55 países, de 6 mil cientistas, um custo de mil milhões de dólares por ano, porventura bem explicado aos diversos financiadores, mas que, desde há uma semana, aparece nos noticiários do mundo inteiro, sem que ninguém questione a anterior ausência de informação. Há já quem lhe chame, no meio da ciência física, a experiência do século. Cujos resultados se estimam para daqui a um ano, sem que se tenha uma ideia exacta dos mesmos, sem que existam certezas sobre o que irá acontecer ao longo dos próximos meses. Apenas nos é dito que nada será como dantes, e que, muito provavelmente, ficaremos a saber como aconteceu o Big bang. Uau! E para isso, para compreender a natureza intrínseca da matéria, temos um túnel circular de 27 kms, escavado na Suíça, perto da fronteira com a França, a 100 metros de profundidade, arrefecido até 271,25 graus negativos - o quase zero absoluto - e no seu interior irão chocar aqueles hadrões, protões, partículas subatómicas, originando temperaturas 100 mil vezes superiores às do centro do Sol. Sem os esclarecimentos que se impunham nestes últimos anos, parece-me ser um aprendiz de feiticeiro que vai estudar o nascimento do Universo. Encontrar a partícula de Deus, o bosão de Peter Higgs ( ainda que outros cientistas defendam a existência não de 1 mas de 5 bosões ), uma partícula subatómica descoberta teoricamente, que explica a origem da massa. Teoricamente significa que ela pode nem existir. Os habituais velhos do Restelo já dizem que se aproxima o fim do mundo. Mas, claro que dentro de dias já ninguém falará da "maior experiência do século", o que é natural, pois este ainda é uma criança. A menos que o aprendiz de feiticeiro faça das suas, para o bem ou para o mal... e as religiões que se cuidem, pois podem perder sustentação.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Morrer de amor

Tinham-me informado - de há anos a esta parte - que o livro estava esgotado e não se previa qualquer reedição. Pois acabo de o encontrar em 2ªedição Fenda. E de o ler. Só conhecia algumas partes, e foi com ternura que o li na íntegra. De Ernesto Sampaio para Fernanda Alves, ou antes, de Ernesto+Fernanda para quem os entender. Afinal, morre-se de amor sem que tal conste da certidão de óbito. Eis a sua dor, a sua solidão, a sua ânsia pelo reencontro:
Quando os sonhos não vão longe, correm até à infância e voltam brancos, por grandes alamedas de tristeza e de bruma, a alturas que o olhar não toca, lá onde tu estás e eu não chego... Quando há uma cama demasiado larga,... Quando se ouvem passos e não são os teus passos, quando o silêncio não é a pausa da tua respiração,... é-se como o veado ferido que agoniza em silêncio.
De mim não resta grande coisa... Estou quase a cair, posso desabar a qualquer momento. Não quero que me vejas cair. Já não sinto o meu eu, o meu peso. Perco o equilíbrio, flutuo. Eras tu a gravitação da terra e do céu, e anulaste-as...
A recordação de um só dia contigo torna inúteis o labor e o prazer de todos os dias que me restam viver... Já não há diferença entre o dia e a noite,... entre a vida e a morte. Entre o seu ser e o meu. É como se também eu já não tivesse existência - ou a tivesse apenas para recordar e adorar.
Como na vida , o amor continua a evoluir na morte... Todas as noites estendo os braços para o seu lado do travesseiro e é como se a respirasse, como se ela estivesse presente, difusa nas claridades longínquas e nas trevas cada vez mais cerradas que me vão envolvendo.
Ernesto sobreviveu um ano à morte de Fernanda, definhando até morrer de amor. Conseguiu nesse hiato escrever um livro belíssimo, só dele e dela, mas para todos os ernestos+fernandas.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

A rentrée em sonho

As férias já não são "as férias". Prisioneiros do progresso, somos cada vez mais reféns do pda, e, através dele, inventámos a fórmula secreta de estar de férias sem nos desligarmos da vida profissional. Dizemos em voz alta, para melhor nos convencermos, que, no fundo, estas duas faces pertencem à mesma moeda, e só têm sentido juntas. E neste suave e doce engano, lá vamos sonhando com a rentrée, com o avolumar das preocupações profissionais, que, por sua vez, irão pedir-nos umas mini-férias de quando em vez. Sempre acompanhados do carregador do pda, claro. Para que aquela moeda não deixe de ser o nosso salário.
Neste perpétuo círculo vicioso e viciante, lá vamos arrastando um corpo que cada vez menos espreitamos ao espelho, e de que só nos lembramos quando os seus queixumes nos incomodam para além do razoável. Porque temos outras dores que mais nos preocupam do que as simples maleitas físicas.
Neste final de Verão sonhei com uma rentrée sem dores de alma. Mas, eis que a erudição dos nossos media me sacode a dormência do sono, enchendo páginas e tempos de antena falando da criminalidade gratuita. Uma anestesia que faz esquecer os problemas do país, os nossos problemas, que deveríamos deixar em vias de resolução para a próxima geração, indubitavelmente mal preparada para a gestão da sua vida pessoal, quanto mais para a gestão da sociedade em que se insere.
A portugalidade continua a não existir num país rendido às notícias que, ora nos distraem dos verdadeiros problemas, ora nos empurram para o grupo coral que canta o refrão "isto está cada vez pior". Um grupo que só canta em reuniões de duas ou três pessoas, passivamente monocórdico, sem revolta activa porque culpabilizando o eterno "Eles" fica com a certeza de, inocentemente ficar de fora; um grupo amorfo, amarelecido entre as tonalidades laranja azeda e rosa murcha.
Não oiço vozes poderosas falar da educação, e de como o que se tem feito é tão pouco para uma urgente mudança cultural nas nossas gentes. Não se fala de como a educação é a trave mestra que sustenta uma sociedade onde os valores humanos estão primeiro.
Neste final de Verão sonhei com uma rentrée sem dores de alma. Claro que foi apenas um sonho.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

2008 na colina verde

Freitag 25. Juli Parsifal I
Samstag 26. Juli Tristan I
Sonntag 27. Juli Meistersinger I
Montag 28. Juli Rheingold I
Dienstag 29. Juli Walküre I
Donnerstag 31. Juli Siegfried I
Samstag 02. August Götterdämmerung I
Sonntag 03. August Parsifal II
Montag 04. August Meistersinger II
Dienstag 05. August Tristan II
Mittwoch 06. August Parsifal III
Donnerstag 07. August Meistersinger III
Freitag 08. August Rheingold II
Samstag 09. August Walküre II
Sonntag 10. August Parsifal *
Montag 11. August Siegfried II
Mittwoch 13. August Götterdämmerung II
Donnerstag 14. August Tristan III
Freitag 15. August Meistersinger IV
Samstag 16. August Parsifal V
Sonntag 17. August Siegfried *
Montag 18. August Tristan IV
Dienstag 19. August Meistersinger V
Mittwoch 20. August Rheingold III
Donnerstag 21. August Walküre III
Samstag 23. August Siegfried III
Montag 25. August Götterdämmerung III
Dienstag 26. August Tristan V
Mittwoch 27. August Meistersinger VI
Donnerstag 28. August Parsifal VI
Die Aufführungen beginnen um 16 Uhr,
RHEINGOLD um 18 Uhr.

Die Aufführung "Das Rheingold" beginnt um 18 Uhr (keine Pause),die übrigen öffentlichen Aufführungen um 16 Uhr. * Geschlossene VorstellungenBeginn der geschlossenen Vorstellungen am 10.08.2008 und 17.08.2008 und 15 Uhr.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Carta à Entidade Reguladora de Serviços Energéticos

Enviei ontem. Não nos podemos calar com os descarados atropelamentos dos nossos direitos. Não deixemos que se riam para ( de ) nós, com a nossa própria dentadura!...

Exmos senhores,

Relativamente à proposta de revisão do Regulamentos de Relações Comerciais e do Regulamento Tarifários, venho apresentar a minha objecção, enquanto consumidor, sobre a denominada "partilha do risco de cobrança com os consumidores". Na composição do preço de um produto ou serviço, entram diversos factores, os quais, confrontados com os custos incorridos com a produção desse produto ou a prestação desse serviço, resultam no apuramento de uma margem de comercialização. Em qualquer negócio, esta margem cobre imponderáveis não explícitos, e que no caso vertente incluem o risco de cobrança. Contabilisticamente, a empresa tem a possibilidade de reflectir nas suas contas uma provisão, retirada daquela margem, para fazer face a situações de incobrabilidade.

Ignoremos a situação particular de monopólio, ou quasi-monopólio, numa actividade: Dizer que os consumidores devem partilhar o risco de cobrança é o mesmo que generalizar a qualquer actividade a possibilidade de repercutir a incapacidade de gestão da empresa fornecedora. Da mesma forma que, por exemplo, não vejo os bancos dizerem que vão repercutir os seus riscos de crédito nos seus clientes.

Os riscos devem ser reflectidos nos balanços das empresas e, no apuramento dos resultados, as partes afectadas devem apenas ser os seus sócios ou accionistas. Estes devem, por sua vez, em sede própria, deliberar se a Gestão tem o problema controlado, ou se, por incapacidade, apenas sugere a transferência reprovável, a qualquer título, dos custos dos accionistas para os clientes.

Vivemos tempos de vacas menos gordas. São tempos perigosos, na medida em que, a tentação de cada um se demitir das suas funções é grande e não pode ser facilitada, como resulta da proposta em consulta pública.

O meu voto de reprovação com os melhores cumprimentos.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Frase copyright

Antes que esqueça, enviou-se em 8 Fev passado, para a Nokia, e a propósito de um passatempo online Nokia E51, a frase:
Hipertenso? Ansioso? Não pode ir de férias por não ter e-mail? Pela sua saúde, não se separe do seu Nokia E51!

quarta-feira, 21 de maio de 2008

As esquinas

Não gosto de esquinas. O mar não as tem e eu não passo sem a proximidade do mar. Os rios não as têm, e são lindos de ver entrelaçando qualquer paisagem. As planícies não as têm, e são o cenário perfeito para a vida sem rédeas. Só as urbes as ostentam. Gosto de muitas urbes, mas nada das suas esquinas. São contornos de prisão. À noite são sítios frequentados por almas que vendem corpos. De dia, são lugares de passagem. Mas também são montra para corpos sem alma. As esquinas ostentam pessoas que a elas se agarram na esperança de que a qualquer momento surja, precisamente ao dobrar da esquina, alguém que lhes traga um sopro de alma.
Tudo isto porque há pouco vi uma mulher à esquina de uma rua elegante. Vestia bem, com cuidado, gosto e alguma ostentação. Mas comia uma tangerina e cospia os caroços para o chão. Sem se dar conta, afastava quem queria virar a esquina.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Filantropia

A propósito dos distúrbios de ontem na África do Sul, lembrei-me de registar algumas palavras sobre alguma filantropia actual. A que tem origem em jovens milionários, que fizeram fortuna suficiente para lhes permitir encarar, sem preocupações materiais, o seu futuro. Um luxo ao alcance de poucos. Não o luxo de poder gastar ou esbanjar dinheiro. Mas o luxo de poderem viver em vida. Saboreando os dias e as noites, numa saudável perseguição dos seus sonhos.
São já muitos os ricos que aplicam as suas fortunas em projectos pessoais, mas com forte e positivo impacto para além dos seus sonhos. Falo de quem comprou vastas extensões de terras em África, reavivando alguma da mística que Hollywood divulgou há dezenas de anos, em filmes de intensidade carnal.
Na tentativa de realizarem desejos após uma vida urbanamente sufocante, alguns dos materialmente poderosos, instalaram a alma em zonas de infinita beleza, nos antípodas do ambiente onde fizeram fortuna. Ajudam as populações a alcançar limiares nunca imaginados de bem-estar: alimentação, educação, medicamentos, etc. Ajudam a que o eco-sistema não seja destruído: dezenas ou centenas de hectares, onde não deixam que a urbanidade cresça como um cancro. Vivem metade do ano em tendas porque o cimento já incomoda. São os novos filantropos a quem agradecemos o despojo material para salvar algumas partes do planeta. Haja esperança no alastrar dessas pequenas manchas mantidas em estado puro.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Frase copyright

Frase para concurso DN/RinRio ( tema pedido: sustentabilidade ) que lhes enviei há uns dias. Sem sucesso, aqui fica registada, just in case:
Má onda, surfar nas ondas do degelo; não contribua para o aquecimento global.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

o Tempo, sempre o tempo

Nada como um par de feriados para dar vida à depressão! Esta velha amiga que, ora se esconde ora aparece, tem-me visitado nos últimos dias com uma assiduidade enfeitada por um vincado sorriso trocista. Com aquele ar de quem não parte um prato, lá me vem deixando mensagens fatais.
Diz ela: Já viste quantos dias de lazer em duas semanas? Imaginas o tempo que vais poder tirar para ti? O quanto vais poder ler, ouvir e ver! os teus livros por ler, os teus discos por ouvir e ver. Enfim, montes de livros que já compraste e ainda não leste. A somar às montanhas de livros que te apetecia voltar a ler. Enfim, as pilhas de CDs e DVDs que não param de aumentar e que ainda não ou(viste). Que se juntam às centenas de discos que gostarias de voltar a ouvir e a ver. Faltam-te... mais feriados! Aliás, pensando bem, todos os livros e discos que possuis, são apenas uma parte dos livros e discos que pretendes ainda vir a ter. Parece-me que os feriados não vão chegar. Parece-me até que,... não sei se te diga... Podes nem vir a ter tempo de vida para ler, ouvir e ver tudo o queres. Pior, tudo o que já tens. Que desperdício! não conseguires gozar o que te dá tanto gozo. Lembras-te daquela sondagem aos wagnerianos? 22% já ouviram o Anel no mesmo dia! Eu sei que tu também já ouviste. Foi... há mais de trinta anos. E achas que o poderás voltar a fazer? Ah, pois, o tempo que não para de escorrer por entre a vida. Tanto desperdício de viver... em vida.
Digo eu: Viver em vida é também varrer a ansiedade e a depressão para fora de mim.
E mais não lhe consegui responder. Será que ela tem razão? Posso sempre pensar que sou vítima da sociedade de consumo. Que não consigo fugir às compras compulsivas de livros e discos, e que, no final do dia, consigo sempre seleccionar o que realmente gosto e me toca. E para o que me toca terei sempre tempo.
Diz ela, íntima dos meus pensamentos, dando-me o braço, grudada em mim, ostentando o único sorriso que consigo ver: Que mentiroso tão sem jeito me saíste!

segunda-feira, 21 de abril de 2008

O tsunami silencioso

Existe flagrante excesso populacional para os recursos desenvolvidos. A fome alastra, as doenças instalam-se, o desespero comanda a razão, a Besta volta a contratar os 4 do Apocalipse. Vêm pela calada da ignorância, aproveitando do desconhecimento generalizado, invadem as populações que estão fora do circuito ocidental, dizimando pela fome. Para os ocidentais, arquivam-se números de vítimas, elaboram-se estatísticas para os compêndios que ninguém abre.

Começam a circular as notícias sobre a escassez de recursos naturais, o petróleo à cabeça, claro, as enissões de CO2, a necessidade de ser conscientemente verde,... E os ocidentais lá vão aceitando que alguma coisa poderá estar mal. E acreditam, porque gastam cada vez mais dinheiro para encher o depósito do carro. Toca-lhes.

Mas, também os preços da comida estão a subir. Toca aos que têm carro e aos que não têm. Aqui, sim, a gravidade é preocupante. É uma onda de devastação que se ergue. Fatidicamente imparável. Fome, subnutrição, doença e morte. Mata mesmo. Destrói e depois aniquila. Já dizimou muitos. Aqueles que estavam no limiar de rendimentos abaixo dos 50 cêntimos por dia. Está a atingir aquele bilião de pessoas - dizem as estatísticas do World Food Programme, agência das Nações Unidas - que têm um rendimento de 1 dólar por dia, que não sabem o que é carne, que reduziram o número diário de refeições; atinge aquela franja dos 2 dólares por dia, que tira os filhos da escola, que deixou de comprar vegetais para poder ter algum arroz. Imagine-se o efeito de expectáveis subidas de preço dos alimentos, na ordem dos 10, 20, 30%. Multiplique-se por aquele bilião, e veja-se o ritmo do seu alastramento.

Tudo isto se passa sem que nos capacitemos da verdadeira dimensão do problema. Apesar da globalização. Silenciosamente, o tsunami - como lhe chamou Josette Sheeran do World Food Programme - avança.

Pegunto-me por solucções. Levanto os olhos para os países ricos. Cegos de não querer ver. Fracos na vontade de atenuar as distorsões. Temos de distribuir tecnologia e não comida. Fazendo jus ao velho provérbio: se queres acabar com a fome do teu vizinho, não lhe dês peixe, ensina-o a pescar. Baixo os olhos, penso nos filhotes, tento soltar-me de tantas algemas...

sexta-feira, 18 de abril de 2008

O Homem sem Qualidades

Um pulinho para dizer que Musil já fala português. São dois volumes da obra monumental que qualquer Homem devia entender. Musil não chegou a escrever o terceiro volume. Teve de morrer, para dar cumprimento ao fatalismo humano. Nós, também nunca o leríamos. Por causa desse mesmo fatalismo. É mesmo assim, então. Lemos, e enquanto lemos, esquecemo-nos que a morte se aproxima de nós.
E tempo para ler?

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Vem aí mais plástico

Regista, meu blog, novo texto premiado pela RV deste mês:
Na sequência de alguma dificuldade da indústria vidreira em responder à procura de garrafas de vidro, o produtor de Bordéus - Castel - veio anunciar que está a considerar enveredar pelo uso de garrafas de plástico. Penso que está dado o pontapé de saída para uma revolução na forma de apresentar o vinho ao consumidor. A seguir ao progressivo abandono da rolha de cortiça vem aí a garrafa de plástico.
Claro que uma razão mais profunda sustenta esta movimentação: o preço crescente de uma garrafa de vidro. O produtor faz contas e a poupança financeira na substituição do vidro pelo plástico, vai repercutir-se certamente, mais na sua conta de exploração, do que na poupança passada ao consumidor.
Mas não é este o meu ponto. Ponhamos de parte aquela pequena franja de mercado de vinhos de topo que continuarão fiéis à cortiça e ao vidro. Olhemos para o consumo normal. E aqui, o que me assusta é o cenário de uma refeição acompanhada por vinho servido no mesmo tipo de vasilhame usado pelos refrigerantes consumidos pelos nossos filhos mais novos. Bom, lá terei de "decantar" todos os vinhos desse futuro próximo, para belas peças de vidro. Vou é ter de pedir às minhas filhas para procederem à operação de transvase, para eu não ver como vinha embalado o vinho que irei beber: olhos que não vêem...

Tudo bons filhos

Experiência:
Vamos pôr os filhos em copos, até meio, e perguntar aos respectivos pais como os vêem.
Resultados:
Uns viram-nos meio cheios, outros meio vazios; quase todos disseram, com irreprimível consternação: é preciso ter sorte com os filhos!
Mau sinal! Porque a sociedade, o país, precisa de bons filhos, bem formados, altamente capazes de a enriquecer sob todos os aspectos.

Serviu esta experiência, levada a cabo ao longo da vida e com fase desgastante no último fim de semana, para realizar aquela verdade insofismável sobre os abismos entre gerações.
É verdade, sofre-se ao reconhecer que pais e filhos vivem em realidades diversas. Ignoremos as excepções, pois é utópico nivelarmos a sociedade por elas.
Sofre-se, quando se é pai, por acreditarmos que não somos compreendidos. Solucção: ir ao encontro dos pensamentos dos filhos.
Sofre-se, quando se é filho, por acreditarmos que não somos compreendidos. Solucção: ir ao encontro dos pensamentos dos pais.
E quando somos pais e filhos ao mesmo tempo? Bom, para além de se sofrer duplamente, acresce um sentimento de impotência para encontrar um espaço de comunhão. A tendência é desistir, sofrer para um lado, sofrer para o outro, tentando equilibrar mais o lado dos filhos. Enfim, ignomínias das condicionantes da natureza humana.
A triste conclusão é que os pais mais velhos têm menos capacidade para se adaptar aos pais mais novos do que estes aos seus filhos. É preciso ter sorte com os pais!
Mau sinal! Porque a sociedade, o país, precisa de bons pais, altamente capazes de deixar uma herança de orgulho aos filhos.

terça-feira, 18 de março de 2008

Ginja


Por isto, por aquilo, mas também pela malvada da preguiça, a verdade é que tenho andado arredado ( gosto desta palavra, e talvez o malfadado acordo ortográfico se esqueça de lhe mexer... ) deste blog. E esta visita relâmpago só acontece porque me lembrei que a GINJA já está na Família há quase 2 meses ( e nasceu a 14 Dez 07 ).

Voltarei!