sexta-feira, 30 de junho de 2017

Passado Presente Futuro



Fala-se de tudo. Mas falar de tudo é o quê? Tudo é a actualidade, o que está a acontecer, enfim, o Presente.
Mas, regra gera, fala-se sem pensar. Pensar é perspectivar para compreender, para poder ter uma visão justificada do que pode significar o Presente. Pensar tem de ser olhar para o Passado, procurar as ligações do Passado ao Presente, e assim compreender e justificar que o efémero hiato entre Passado e Presente é um tempo contínuo que nos transporta para o Futuro. E o Futuro deixa de o ser quando vivemos, tal como o Presente rapidamente se transforma em Passado.
Pensar é conseguir a compreensão destas ligações. Só assim conseguimos compreender o Presente que estamos a atravessar e então equacionar o que pode ser o Futuro.
O que se nota cada vez mais, é que ignoramos o Passado, os seus ensinamentos, e nos espantamos com o que acontece no Presente. Seja o surgimento (ou antes, ressurgimento) do populismo. Seja o desmoronamento social. Seja a tomada do poder pelos menos capazes.
Deixámos de pensar, já só falamos. Com pressa, à velocidade das movimentações nas redes sociais, que anestesiam a mente, tornando-a preguiçosa demais para pensar. Descuramos o desenvolvimento da inteligência e deixamos o mundo entregue à instalação da esperteza. E esta, salvo raríssimas excepções, não anda de mãos dadas com aquela.
Até percebermos este perigo de não sabermos ligar Passado Presente Futuro, iremos conhecer um Presente que não entendemos e que nos vai fazer sofrer.


C Brown, untitled

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Intervalo





Talvez um dia junte mais escritos, sempre inspirados no Tristão. Mas um intervalo impõe-se, por quem sabe mesmo escrever.

Para a dedicação de um homem - Ruy Bello

Terrível é o homem em que o senhor
desmaiou o olhar furtivo de searas
ou reclinou a cabeça
ou aquele disposto a virar decisivamente a esquina
Não há conspiração de folhas que recolha
a sua despedida. Nem ombro para o seu ombro
quando caminha pela tarde acima
A morte é a grande palavra desse homem
não há outra que o diga a ele próprio
É terrível ter o destino
da onda anónima morta na praia



Cecily Brown, flightmask

A Rosa - A Manhã - A Ternura




A Rosa

 
O amor às escuras tropeça
Sem faro e cego
Percorre caminhos secretos
Sem pétalas
Tacteia na memória e no sonho
Sem adormecer

O amor torna-se longínquo
Sem verão e sem primavera
Abandona-se à intempérie
Sem chuva ou sol
Cravejado de espinhos
Sem sangue ou dor

O amor não tem feridas
É uma rosa que não se vê
Com pétalas que são caminhos
Onde se atravessam espinhos

A menos que este choro
Da minha alma
Seja de dor
E estas lágrimas
No meu peito
Sejam sangue
E a rosa sejas tu.

 

 


A Manhã

 
A manhã parece subir
Mas é engano sem ser feitiço
De facto, desce cada vez mais
Enterrando as trevas sob os seus pés
Empoleirada nos meus ombros
Às cavalitas da minha perplexidade
 
Eu não quero esta manhã!
Nem mais uma manhã!

Para onde vai o meu querer
Tão frágil, todo ele feito de sonhos
Esfumados todas as manhãs
Evaporados no enterro de cada noite
Destruídos por esta manhã
E por todas as que se lhe seguem
 
Eu não quero esta manhã!
Nem mais uma manhã!

E a manhã tomou a forma do rio
Onde não me quero afogar
E desenhou a montanha
Onde não me quero perder
Não quero ter a certeza
De que amanhã haverá outra manhã.

 

  

A Ternura

 
A ternura é desejo que desaba
É solfejo que desafina
Já não procuro nos desencontros
Ternura igual à dos meus sonhos.

Olho as tuas fotografias amarelecidas
Vítimas do tempo sussurradamente eterno
Mostram-me o mundo que me é externo
Castigam-me com a memória do que me é interno
E deixam-me o sabor faminto de cada teu gesto terno.
 
Já não procuro nos desencontros
Ternura igual à dos meus sonhos
Busco antes os sonhos
E não os encontro.



C. Brown, girl on the swing
 

O Escravo - Desculpa - Dias - Naked Soul




O Escravo

 
Tu, túmulo ainda vazio
Tens sede de mim
Fica sabendo esta certeza
A escrita é o meu amo
E só ela dirá quando for chegada a hora.
 
Nasci para viver
Fui crescendo à procura da vida
Tornei-me escravo de procurar
Esqueci-me de quê
Hoje sou escravo de escrever
Aprendiz daquilo para que nasci.

 

 

 

Desculpa

 
Desconheço arte ou sabedoria
Não sei como pedir desculpa
Talvez tudo tenha sido um acaso
E eu não seja verdadeiramente culpado.
 
Mas como namorar o tribunal
Palco de vidas moribundas
Por onde se passeiam sentimentos
Que não senti, vozes
Que não ouvi, luzes
Que não vi.

Junto-me aos que me acusam
Tento diluir-me nas sua personagens
Mas não sei ser actor
Por isso, olho-os a todos de frente
Abrindo os braços às suas luzes e vozes
Acolhendo os seus sentimentos.

Afinal sei, como pedir desculpa
Por ter nascido e por ainda viver
Num corpo mortal cuja alma
Desgraçada, nem aprendeu a respirar.

 

 
 
 

Dias

 
Dias que só a agonia aquece
Transformando a esperança numa lareira
Apagada
 
Dias como fogões acesos sem calor
Capaz de derreter os farrapos das paixões
Moribundas
 
Dias que rezam pelas noites que tardam
Lançando bênçãos à paralisia do mundo
Amaldiçoado

Dias que arrepiam o pensamento
Desequilibrando-me nos píncaros das
Dúvidas

Dias a que me agarro de olhar vago
Para melhor me perder na pequenez dos
Espaços
 
Dias que escorrem pela vida
Como sangue fugitivo aos tropeções
Nas ruelas.

 

 

 

Naked Soul ( to Tindersticks )

 
This wind swirls your scent
Into my memories
My soul drifting
Drinks the sea where you drowned

I dive deeper and deeper
To get this wind away
From my mind
But this sea shivers my naked soul
Gathering the broken pieces of my memory

Please mermaids drown me
In your nymph dreams
Save my naked soul
Lost to be found
Save this wretched soul
From this quaking ground

This wind brings the velvet of your skin
Into my memories
My soul deadly kissed
By the rage of my anxieties

I need to drink your sighs
To get this thirst away
From my mind
But this sea is so cold
Is frozening my naked soul

Please mermaids drown me
In your nymph dreams
Save my naked soul
Lost to be found
Save this wretched soul
From this quaking ground

There´s no wind anymore
Without memories
My soul is lost inside of you
Dreaming to be found by you

There´re no colours anymore
Erased by my jealousy
Of your kisses stolen by your breath
Forgive me darling, for this naked soul
Jealous of the air you breath without me

Please mermaids drown me
In your nymph dreams
Save my naked soul
Lost to be found
Save this wretched soul
From this quaking ground

 
 
C Brown, service DeLuxe

Vintage - (Con)Vocação - Massacre - O Disfarce - Os Poros - A Magia - Os Lobos



Vintage

 
Choro pedras que não se vêem,
Lágrimas que não consigo engarrafar
Líquido impossível de te oferecer
Preciosa colheita de segredos
Chorados em desperdício vintage.

Choro pedras que só eu vejo,
Beijo tormentos de corda rude
Corda com que adorno o meu pescoço
Pronto para iniciar uma viagem sem regresso
Acompanhado de desperdícios vintage.

Olhos abertos num impulso
Salvo por uma reles intuição
Duvido do medo com medo da dúvida
Só porque estou possesso
Desta vontade de chorar pedras… vintage.

 

 

 

(Con)Vocação

 
Convoco a noite
Nela me derramo com insólita vocação
Convoco o silêncio
Nele me escuto com devota vocação
Convoco a luz de cada penumbra
Nela me vislumbro em assomos de penitência
Convoco ar, terra, água e fogo
Convoco espíritos aprisionados
Convoco o que não existe
Juro que por vocação.

Em tudo me procuro
Não sei nunca o que encontro
Eu? Tu? Bocados de mim?
Triste fado este
Procurar por vocação
Encontrar por convocação.

 

 

  

Massacre

 
Morrer é alívio estupro
Viver estas penas é massacre
Saber desta vida é sofrer
Contar o tempo de vida é morrer.

Parem este tempo destravado
Ardina do amanhã sem mim
Corredor demasiado célere
Companheiro da minha caminhada;
Hoje sinto a certeza dúbia
Se eu parar o traidor continua
Serei mais um que por aqui passou
Participante obrigatório no massacre.

De que fibra és feito tu, tempo
Abençoado por todas as maldições
Ignorante da dor de sentir
Monstro neste cenário de massacre
Contabilista de mortes e nascimentos
Máquina de corda perpétua
Inveja do meu coração cansado,
Eu fico aqui e tu para onde continuas?

Falta-me a tua força anímica, tempo
Respiro este ar que me asfixia
Não consigo reter o teu sopro de eternidade
O meu corpo baixa os braços sem que eu queira
Os olhos fecham-se, rebeldes à minha vontade
Este coração pára, desobedecendo-me
As minhas cores ficam pálidas
Desistes, tempo, de me continuar a massacrar.

Morrer é uma forma de vazio
É deixar de aplaudir o espectáculo
Em que fomos exemplares figurantes
É, tão só, sair da arena do massacre.

Viver é perguntar “Para quê? “,
Viver é procurar responder
Viver é participar no nosso massacre
Morrer é um fim para a resposta.

 

 

 

O Disfarce

 
Alma de luto, olhar sem chama
Pés descalços sobre brasas
Ignoro as sombras que falam comigo
Deito-me em cama alheia
Respiro sem convicção
Custa-me acreditar que vivo
E assim nasce o meu disfarce.
 
Todas as manhãs me visto
Cores vivas sobre a alma
Óculos escuros, mesmo sem sol
Sapatos nos pés sem ferida
Assim passeio com convicção
Creio-me afastado da maldita morte
E assim nasce o meu disfarce.

Mas da morte fico ainda mais perto
Choro ao mesmo tempo que rio
Ostento a contracapa de mim
Suspiro quando finalmente estou só
Rasgo e queimo falsas convicções
Na fogueira onde ardem os despojos
E assim destruo o meu disfarce.
 
As pessoas chegam e partem
O meu porto recebe-as com indiferença
Teço uma teia de gestão de relações
Deito fora umas e guardo outras
Vou escolhendo sem convicção
Até que só esta fogueira me aqueça
E assim ressuscito o disfarce.

Cavalgo nas costas do medo
Sem querer ferir quem me ama
Inocentes por mim guardados
Por mim regados, para eu amar
Num amor que perde convicção
Construído a partir das ruínas
Onde quero sepultar o disfarce.

 

 

Os Poros

 
Meu corpo procura na névoa
Uma neblina transparente
Onde banhe toda a sua estrutura
Molécula a molécula
Onde perca os pontos cardeais
Da memória
Onde tome de empréstimo
O crepúsculo
Onde consiga ouvir a marcha fúnebre
Do verbo
Onde possa tocar uma vez que seja
Na minha alma
Onde, por fim, aprenda a respirar
Por todos os poros.

 

 

 

A Magia

 
Quero convocar os deuses
Receio o bocejar
Aviso que o meu corpo são cinzas
Que vou petrificar
Mas ainda não escolhi o formato
Não me vão acreditar
Pego na varinha mágica
Agito-a no ar
Vão ver do que serei capaz
Pronto! eis o bocejar
Esperem, vejam o meu novo corpo
Não consigo petrificar
Desisto, só vejo densas sombras
Num perpétuo oscilar
São um pêndulo entre a magia e eu
Condeno o meu fingimento
Repudio este meu ar
Em desalento, invoco ajuda
Que a morte me acuda!




 

Os Lobos

 

 

A noite cai à minha volta
Desce em largos voos
Poisa sobre os meus olhos
Leve.

Ao longe, uivos rasgam a calma
A imagem de lobos esquálidos
Poisa sobre os meu olhos
Tensa.

Horas esquecidas na serrania
Embalado nas melodias do pastor
Trinados que me hipnotizaram
Sons que me arrepiaram
Cenário que me cativou
Horas esquecidas que a noite enterrou.

O pastor dorme, os cães velam
Inquieto, o rebanho, pede sol
Sinto que o pasto interrompeu o verdejar
A escuridão bastou para tudo alterar
Não mais queijo, manteiga, leite para beber
Hoje vai acabar a alegria de viver.
Os lobos descem ligeiros
As encostas e os terreiros
As pedras tornam-se macias
Os olhos dardejam falsas carícias
Potentes ardis de atracção
Onde sinto presa a minha atenção.

Pastor e cães iniciam batalha
Lobos lutam por uma migalha
Sonhos e pesadelos pelo meio
Misturados em ébrio devaneio
Acordam-me desta letargia
A noite vai deixar passar o dia.

Os lobos sumiram por encanto
O pastor entoa o seu canto
Do rebanho… resto eu.

A noite levanta-se à minha volta
Sacode-me mas não me acorda
Deste torpor de respirar
Não me consegue avisar
Que a vida é o mote
Que persegue a morte.



C Brown, untitled