quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Um conto,... escrito, publicado e premiado, há um par de anos


As minhas amigas lá me foram prevenindo sobre a insólita característica que acompanha o estado de gravidez da maior parte das mulheres: bizarros e incontroláveis desejos de comida. Com exemplos: fulana só queria comer cascas de laranja. Arrrgh! Beltrana desejava figos de capa rôta... em Janeiro. E eu, franzindo a testa, sorria de incredulidade. Verás! lá mais para o Verão, diziam-me elas. Avisadamente. A sentença estava lavrada, as minhas férias de Verão seriam um amontoado de dias atacados por estranhos desejos tão difíceis de satisfazer como encontrar um Maybach no parque de estacionamento de um hipermercado.

As semanas passaram, a barriguinha começou a mostrar-se e, absorvida por tanta alegria e tantas compras que eram sonhos concretizados, lá fui esquecendo aqueles avisos.

Trabalho na baixa lisboeta e um dia, entro numa pastelaria e oiço-me a pedir... uma francesinha. Isso só no Porto, minha senhora.
Caí em mim, esqueci-me da fome, e fui para o escritório. O trabalho deve ter-me distraído, pois só voltei a pensar no assunto a caminho de casa, quando voltou a apetecer-me uma francesinha. O meu marido entretanto chegou e fazer as malas para a nossa quinzena de férias no Algarve voltou a distrair-me.

Nessa noite não consegui adormecer. O meu pensamento visitava, uma a uma, as conversas avisadoras das minhas amigas sobre os desejos das grávidas. Não havia precedentes sobre francesinhas. Estava a acontecer-me! Estava apanhada pelo síndroma do desejo da grávida. Meu Deus, não poderei ultrapassar isto com racionalidade? O meu marido mexeu-se. E se eu lhe pedisse para interromper as férias a meio e darmos um pulo até ao Porto?

Foi uma noite em que conheci de perto o pânico. A angústia alojara-se definitivamente na minha almofada. O meu marido detesta francesinhas, e tínhamos as noites todas planeadas para jantares que fossem marcos gastronómicos. Como é que eu lhe haveria de dizer que preferia uma francesinha a um vol-au-vent de marisco e peixe?

Conheci o meu marido numa roda de amigos à volta da mesa. Era um grupo que planeava os sábados, de forma rotativa, em casa de cada um. O anfitrião cozinhava, escolhia os vinhos, e no fim aguardava em sofrimento a pontuação dos restantes convivas. Pontuava-se o arranjo da mesa, a entrada, o prato principal, a sobremesa, o vinho escolhido para cada etapa, e, finalmente, a harmonia do conjunto.
Aquele que é hoje o meu marido, pretendia dilatar o âmbito da pontuação para que esta abrangesse o café, o Porto e o charuto. No seu purismo e perfeccionismo, aceitava que não fossem pontuados os maltes.
Estão agora a ver com quem eu casei! Não é de admirar os calafrios e os horrores que me percorreram nessa noite.

Só que, o pior estava para vir. Na viagem para sul, parámos numa área de serviço da auto-estrada. Pedi uma francesinha, em voz baixa, mas o meu marido ouviu-me. Ergueu o sobrolho e esperou que eu repetisse o pedido. Saiu-me um café com leite e um pastel de nata, no meio de um sorriso nervoso. O incidente passou, mas à noite, sentados no terraço do restaurante, com a carta de refeições aberta a vinte e cinco centímetros dos meus olhos, eu não conseguia ler coisíssima nenhuma. Tudo o que eu queria era uma simples francesinha.
Pedi ao meu marido para escolher por mim. Estranhou e quis saber o que se passava. Contei-lhe tudo. Dos desejos mais disparatados das grávidas. Mas que deveriam ser encarados como absolutamente normais. Engraçados até. Tradicionais, como os pratos que ele às vezes confeccionava e que até saíam bem.
Como a escolha estivesse demorada, o meu marido pediu um “chip dry”. Ou seria para arranjar coragem de não me interromper? E lá lhe contei do dia anterior, na pastelaria. Ele fez Ah! E nessa exclamação percebi que estava a ver-me na área de serviço e me considerava tontinha. Estás cansada, dizia-me ele, um carabineiro e um salmonete grelhado vão devolver-te a serenidade, nesta noite tão bonita. Acho que sim, disse eu. Mentira, não achava nada. Qual carabineiro qual salmonete, o que eu queria mesmo era uma francesinha.

Enquanto esperávamos, o meu marido tentou abordar psicologicamente a questão dos desejos. Tudo influência das coisas que as mulheres contam umas às outras. Estás a insinuar que eu sou influenciável? E abri-lhe os olhos. Ele corrigiu para a susceptibilidade e hipersensibilidade a que está sujeita uma mulher grávida, e por isso permeável a sugestionar-se com tudo o que lhe pareça normal e bom para o seu bem-estar e o do bébé.

Notei o alívio da sua expressão quando trouxeram os carabineiros. Confesso que também senti um certo alívio com a possibilidade de desanuviar a conversa, mas o meu marido provocou-me logo de seguida. Estão óptimos, fresquíssimos, com os sucos no ponto, disse ele. Estão secos, não me sabem a nada, disse eu e apenas comi uma ínfima parte. Tínhamos pedido um Alvarinho, que estava esplêndido, mas o meu marido sabendo que eu aprecio melhor uma refeição com um tinto ao estilo “Novo Mundo”, atribuiu a minha falta de apetite a esse factor e tentou corrigi-lo a tempo. Rejeitei o tinto alegando que estava acima da temperatura a que deveria ser servido. Apesar do balde de gelo do Alvarinho ter albergado o tinto, nada feito. Amuei.
O jantar estava a ficar estragado. O meu marido ausentou-se por minutos. Continuámos calados até nos arranjarem o salmonete para os nossos pratos. Desta vez, ele, ao ver que eu mal tocava no peixe, evitou qualquer comentário apreciativo sobre o seu estado, e disse-me olhos nos olhos: não te esqueças que tens de alimentar o bébé.
Que bem me soube o salmonete, e lá me desculpei com as saudades de um bom sabor a mar. Até que veio a carta das sobremesas. Pedi um gelado. O meu marido fez aquele sorriso matreiro de que tanto gosto e veio um prato com meia fatia de pão, meia salsicha, meio bife, um ovo estrelado, encavalitados em mais qualquer coisa que não me lembro... Juro que devorei aquela sósia de francesinha com o maior deleite e os olhos húmidos.

Sem comentários: