quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Versão 2 do conto anterior, sempre inacabado



A
Richard Wagner


- Aceite os nossos desejos de uma boa estadia, Don Afonso!
Afonso de Coimbra agradeceu com um sorriso que o empregado interpretou como tímido. Nada mais longe da verdade: era um sorriso que brotava embrulhado num turbilhão de pensamentos e recordações. Afonso sorriu agradado pela forma como os empregados do Parador o tratavam: Don Afonso. No seu país, o tratamento Dom caíra, infelizmente, em desuso, há muitas décadas, e ele adicionava este facto ao cesto das pequenas coisas que, em seu entender, estavam a aniquilar uma forma digna de estar em civilização. Sem se considerar saudosista, uma das memórias que o visitava nestes momentos, pertencia à sua infância e referia-se à forma como algumas pessoas se dirigiam ao seu avô: Dom Manuel. Afonso, que, na altura, achava um tratamento normal, veio, com os tempos, a constatar que o Dom significava deferência pela pessoa, e hoje em dia a palavra deferência era um fóssil nos relacionamentos pessoais.
Afonso nunca se separava daquele cesto, tão cheio, de recordações que ele empunhava como estandartes de uma resistência à vulgaridade que transformava o ser humano em números. Ali, na Espanha dos Paradores, ele não era o hóspede do quarto 217, mas sim Don Afonso, a quem tinha sido entregue a chave da habitação 217. Fazia toda a diferença, mas o seu filho, quando o acompanhava em Espanha, não concordava com ele: que disparate tão grande, que vergonha a senilidade do pai, e ironizava chamando-o de Don Afonso de la Mancha, para depois encolher os ombros com indiferença consentida: qual a diferença entre Senhor Afonso e Don Afonso? Nenhuma, pai. Nenhuma? Que cegueira insensível a deste meu filho! E a Afonso restava-lhe a esperança de que a neta – meu Deus, como ele já tinha saudades da sua menina! – apreendesse o que de bom o mundo tem tido. E um dia, sem medo dos fantasmas que se penduram nos passados, ela convencesse o pai de que, ao mundo de hoje, faltam algumas coisas boas que se perderam com o nivelamento, por baixo, das pessoas. Coisas sem custos materiais. Que revelam civilidade. Recuperáveis. Assim se formasse uma geração assente em valores sólidos. E o filho, encolhia de novo os ombros, triste por ver o pai mais perto da utopia do que do bom senso realista. Mas ele, Don Afonso, viúvo e reformado, assumira como nova página da sua vida, a missão de transmitir à neta, de cativante brilho nos olhos, porque razões valia a pena viver. E nesses momentos Afonso abria o cesto e mostrava-lhe estes pequenos nadas, que ela agarrava para se sentir mais perto do avô. E Afonso sorria por ver crescer as raízes da dignidade.
Foi com este sorriso que Afonso ouviu a porta do seu quarto fechar-se, e se dirigiu à varanda. A paisagem era a mesma que encontrava todos os anos: um jardim que se espraiava por baixo dos seus pés, uma piscina imensa que transbordava de azul, mas principalmente um mar sem fim, que começava já ali, em Nerja, o balcão da Europa, e que não acabava nunca.
Afonso estava em casa. Quase feliz. Sentou-se numa das cadeiras, depois de colocar o toldo da varanda em posição que lhe tirasse o sol dos olhos. E começou a procurar sem ver. Procurava uma senhora, a dona dos seus sonhos e de uma parte da sua vida, a parte sonhada. Mas não via ninguém, apenas o desfilar de imagens de há muitos anos.
Ao longe, o mar aproximava-se dos seus olhos em ondulações imperceptíveis. E trazia-lhe este Parador, vindo de um passado intacto, de uma Nerja onde tinha conhecido Maria Duval, numa conferência de dois dias.
Ao perto, o relvado bem tratado, mostrava-lhe o interior desse Parador, como tinha ficado deslumbrado com a localização, mas, acima de tudo, fazia-lhe recordar como o destino os tinha colocado lado a lado ao jantar, depois de um dia em que, apenas a inteligência de Maria lhe tinha despertado a atenção, numa intervenção que fizera. O verde forte da relva recordava-lhe como a conversa fluíra entre ambos. Como as frases antes de começarem a ser ditas já tinham sido compreendidas. Como as horas, e não eles, devoraram o jantar. Como, num momento fatídico, olhou para a sua mão esquerda e se lembrou que era casado. Como o seu olhar fez ricochete para a mão esquerda dela. Como ambos coraram quando os olhos se voltaram a encontrar. Como naquele instante ela se levantou da mesa, desculpando-se e desejando-lhe uma boa noite. Como, de olhos desarmados, mentiu que também estava cansado, e lhe sorriu, como quem pede desculpa por existir. Meses mais tarde, Maria tinha-lhe confessado que aquele sorriso desconcertado tomara conta dela, do seu ser, da sua força para amar, do seu desejo de ser amada por ele.

Afonso mudou de roupa, para uns calções, desceu até ao relvado e passeou-se por ele, retendo o prazer do contacto com a relva, debaixo do mesmo sol de todas as primaveras vividas depois de conhecer Maria. Levava consigo um livro que havia comprado há já algum tempo, mas não tinha ainda sentido o impulso para o ler: “Viver para contá-la” do sensível Gabo. Dir-se-ia que estava à espera de qualquer coisa para começar. Olhou para o livro e, perante a sua memória, viu desfilar pela boca de Maria, um verdadeiro exército de escritores que ocuparam parte das leituras dos últimos anos. Quer de um quer de outro. Ibsen, Lorca, Duras, Yourcenar, Pessoa, Hemingway, Tennessee, Witman, Hugo, e outros de sensibilidades menos complexas, ou de que não conseguia lembrar-se, ou de que Maria não lhe tinha falado. Ou, muito especialmente, todos aqueles escritores que levaram uma vida inteira para escrever um único livro, valioso, por espelhar com sentimento genuíno vivências únicas. Mas, mas... cujo cativeiro de emoções afugentava os leitores.
Passou as mãos pelas lindas e caprichosas árvores, sentiu-lhes a vida, a sua seiva pulsava com o seu sangue e invejou-as por um segundo, só até se lembrar, quase instantaneamente, das mãos de Maria. Da primeira vez que uma lhe tocou, poisando no seu braço ao pequeno almoço, acompanhada de um “Bom Dia, posso sentar-me?” .
Com um sorriso virado para a árvore, lembrou-se de lhe ter respondido: “Claro, claro”, mas que, na realidade, o que quereria ter dito era a verdade que lhe devorava o íntimo desde a noite passada, e que não o deixara dormir: “Estava mesmo a pensar em ti!, deslumbraste-me com a tua inteligência, a tua forma de estar na vida. Nunca senti tanto prazer em falar com alguém”. Lembrava-se que conseguira, minutos mais tarde, completamente a despropósito, dizer que aquele era o melhor pequeno almoço que tomara em toda a sua vida, graças à companhia dela e ao cenário com o mar em fundo, da manhã primaveril. Lembrava-se que se seguira um silêncio, eloquentemente quebrado pelos pássaros.
E o sorriso continuava no rosto de Afonso, lembrando-se que chegaram atrasados à sessão da manhã. Que pouco falaram durante o dia. Que, no intervalo para o café da manhã, correu para lhe falar. Que Maria estava sempre acompanhada. Que se colocou entre ela e a mesa dos bolos, e distraidamente tirou um. Que nesse instante Maria fez voar a sua mão na direcção do mesmo bolo. Que as suas mãos se tocaram e o mundo parara. Que naquele instante, o universo os havia declarado um só. Que ao jantar, o anjo da guarda que no dia anterior os juntara deveria estar de folga: e que, por isso e só por isso, ficaram em mesas separadas. Que nunca comeram tão rapidamente. Que nunca ansiaram tanto pelo fim de um jantar. Que este nunca mais acabava, porque tinha discursos dos orientadores da conferência. Que foram para o bar do Parador, tentando ficar sós. E que não conseguiram. Até que a noite desceu sem piedade e Maria subiu com os colegas da empresa dela, não sem se despedir com uma súplica suspensa num último olhar.
O sorriso desvanecido de Afonso, recuperou vivacidade ao recordar que subiu ao quarto sem perda de tempo, conseguiu o número do quarto dela e quando lhe ia ligar, o seu telefone tocou e ouviu a voz de Maria: “ Queres ir ao cinema?” “Quero, vou já descer.” Ao cinema?! À uma da madrugada?! Ali? Era importante a hora? Qual hora? Importante? Importante era saciar a fome de viver com a sua alma gémea. Viver a sua alma gémea, que o tinha despertado para a vida. Viver, sem saber onde começava e acabava a sua identidade. Viver!

Ao notar que o sorriso se tinha transformado num riso, Afonso disfarçou e dirigiu-se para a esplanada do Parador. Sentou-se virado para o mar. O azul deslumbrante das águas que pareciam paradas, era salpicado aqui e acolá por pequenos barcos de pescadores. Antes do pôr-do-sol, ainda iria lá abaixo à praia. Gostava de ver os barcos no areal e absorver aquele ritmo. Indolente, porque alheio e desprovido de pressas. Sábio, por saber saborear a vida. O empregado interrompeu-o, recebeu o pedido de um xerez, cortesia a que se habituara por ter cartão dos Amigos de Paradores e deixou Afonso mergulhar de novo no seu passado:
Viu como chegaram, ansiosos, ao átrio do parador, praticamente ao mesmo tempo, e como entraram na madrugada, com dois sorrisos nervosos. Maria confessou que não sabia sequer onde era o cinema, nem fazia a mínima ideia se havia alguma sessão àquela hora. Ele quis dizer-lhe que o importante era estarem juntos, mas a boca era como se estivesse colada. Pelo caminho, nas pitorescas ruas de Nerja, foram falando de cinema. Antonioni a preto e branco, Visconti a cores, Wells, Wilder. Um cartaz afixado desviou-lhes a atenção: Sábado 21 de Março, António Ordoñez na praça de Ronda. “Hoje já é sábado”, disse Maria, com uma voz ligeiramente triste, “temos o encerramento da conferência de manhã, e a saída para o aeroporto, e...” Afonso colocara as mãos nos ouvidos, recusando acabar o sonho, até se aperceber que Maria se calara. Então, como quem muda de rua, ele começara a falar dos actores. Hayworth, Bacall, Bogart, Gardner, Garbo, Dietrich, Brando, Hoffman. Chegaram a um edifício que bem podia ser um pequeno cinema e imaginaram: eis o cinema, luzes acesas, a última sessão começa... agora. Riram, mas como duas almas infelizmente felizes! Inventaram o filme em cartaz. Inventaram que àquela hora passavam reposições e estava quase a começar... Casablanca. Calaram-se como se escutassem uma conspiração dos deuses. E regressaram ao parador. No caminho, não conseguiram falar. Atravessaram o lobby, e ouviram Sinatra. Night and Day. O ascensor abriu as portas, mas eles não se mexeram. Quando a canção acabou, Maria voltou a chamar o ascensor, marcaram piso 2 e piso 3. Ele saiu primeiro “Bons sonhos, Maria! Sei que vou adormecer a sonhar contigo.” Mas Maria não teve tempo de responder e o ascensor levou-a para o piso de cima.

A recordação do ascensor levou Afonso a atravessar o relvado até ao ascensor do parador que o conduziu até à praia. Pelos vidros, viu a praia aproximar-se. Saiu, desceu os degraus e começou a atravessar o areal. Contou doze barcos. Doze. Tantas vezes como as que o telefone do seu quarto tocou antes dele conseguir abrir a porta e pegar no auscultador. Sabia que era Maria. “ Não digas nada, Maria. Hoje é a nossa última noite e eu gostava de passar todos os seus segundos contigo.” Ela não lhe respondeu e ele voou pelo quarto fora e subiu as escadas. Maria recebeu-o descalça, mostrando os pés mais sensuais que ele alguma vez veria, pôs-lhe a mão na boca e ele abraçou-a, enquanto fechavam a porta.

Em Março, a praia estava com poucas pessoas, e Afonso, um pouco curvado sob o peso de tanta esperança, lá foi atravessando o areal, perscrutando barcos, pescadores, turistas. Olhava para as pessoas e tentava imaginar as suas vidas. Felizes? muito, pouco ou nada? O seu ânimo, como habitualmente, começava a fraquejar ao final da tarde. Enviuvara há cinco anos e esta era a quinta vez que vinha a Nerja, sempre no dia 21 de Março. Todos os anos vinha carregado de uma esperança cheia de vida, mas acabava por partir com um desalento que o prostrava durante semanas. A ponto de achar doentia esta peregrinação anual. Depois, a pouco e pouco, retomava as leituras, ouvia a música que lhe falava ao coração e começava a acumular novas energias e esperanças para o próximo ano. Se fosse vivo!, sublinhava a sua face racional. Cada ano com mais força.

Ao longe viu uma figura que lhe fez bater forte o coração, mas bastaram dois passos para desfazer o equívoco. Afonso fazia, uma vez mais, o balanço da sua vida, sem se arrepender das decisões tomadas. Fora casado. Um casamento “normal” na sua classificação. Um filho de que se orgulhava. Uma neta em quem depositava a esperança no futuro. Alguns anos depois de casar, conhecera a sua paixão no Parador de Nerja. Conhecera-a ali, naquela atmosfera, naquele mar, naquela areia, naqueles seixos tão arredondados pelo tempo. Já não era jovem, mas vivera-a tão intensamente, como a chama consome um fósforo. Encontravam-se sempre que podiam, amavam-se como se mais ninguém existisse no mundo. Mas existia. Ele e Maria teriam de tomar opções. Embora com a dor esmagada nas entranhas, sentiram-se orgulhosos da decisão tomada. Ambos com filhos e casados, não conseguiriam construir a sua felicidade sobre a infelicidade de quem amavam. Não conseguiriam voltar a falar-se, e muito menos a ver-se, pois a úlcera da paixão estava aberta e precisava fechar-se, encerrando no seu casulo o amor vivo e só assim intacto. Na despedida, o nó que Afonso tinha na garganta, deixou passar, quase inaudível, um juramento, feito ao rubro, olhos nos olhos: “Somos gémeos, como Sieglinde e Siegmund, e por isso, por muitos quilómetros que existam entre nós, nunca estaremos separados. Se um dia, o que hoje me faz decidir fechar o livro antes do fim, deixar de fazer sentido, eu Afonso de Coimbra, voltarei a abri-lo e esperarei por ti, Maria Duval, no Parador de Nerja no dia vinte e um de Março de todos os anos, até que tu também sintas condições para voltar a abrir o livro, ou até ao dia em que as forças do sopro da vida me abandonarem. Amen.”

Uma ligeira brisa começava a levantar-se, anunciando o pôr-do-sol e secando uma lágrima fugidia nos olhos de Afonso. Olhou para o livro e, com uma expressão de absoluta serenidade, como entoando uma oração, mudou-lhe o título: “Viver para vivê-la”. O sorriso que esboçou, quando entoou mentalmente o novo título, era de esperança conformada.
Com o escorrer dos anos pela sua vida, Afonso passou a valorizar, cada vez mais, os momentos que conseguia passar consigo mesmo, aprendeu a colocar a dor no altar das coisas que eram assim porque eram assim, porque eram de Deus. Num daqueles momentos, passados neste mesmo Parador, debruçado para a praia, a mesma praia que agora o observava, escrevera umas palavras que manteve junto a si desde então. Tirou um papel pequeno da sua carteira, dobrado, com vincos de cor acentuada pelos anos, desdobrou-o e leu devagar, como se quisesse dar tempo ao tempo, para lhe trazer o resto dos seus dias.

O jardim

Hoje, como há precisamente um século,
Percorro, descalço, o meu jardim
Piso o chão que ainda cheira a ti
Abraço qualquer árvore, planta, tubérculo
Cometo o pecado de te colher para mim.

Hoje, transportada pela volúpia sem fim,
Percorres, descalça, o teu jardim
Atrais-me e eu saio de dentro de mim
Para entrar com prazer na tua escuridão
E iluminar-te de amor o coração.

Hoje, como há precisamente um século,
Percorremos, almas gémeas, o nosso jardim
Criamos ambientes que nos aproximam
Recusamos as evidências que nos afastam
Castigados pela memória de nele passear.

Hoje, como no princípio dos tempos,
Lembramo-nos do jardim
Onde a beleza recusa abandonar o teu rosto
Onde a certeza de que o nosso amor existe
Nos alivia da memória que teima não ter fim.
E persiste.

Sempre que lia aquelas palavras, Afonso, arranjava forças para manter a esperança de viver, nem que fossem os últimos dois dias da sua vida, acompanhado pela sua paixão. E conseguia sorrir, como quem diz: ainda não estou velho! Posso esperar outro ano, e outro!...
A noite ia pedir um agasalho. Estremeceu com os arrepios que o percorreram. Não de frio, mas porque, de vez em quando, um pensamento negro atravessava-lhe o corpo, rasgando-lhe a alma, tirando-lhe bocados de vida: e se Maria já tivesse morrido? E Afonso recompunha-se, com o mesmo sorriso de sempre: Maria estava tão viva quanto ele, pois assim o sentia.
A praia estava já deserta, quando se dirigiu para o ascensor que o devolveria ao Parador. Rodou a chave para o chamar e esperou que a cabine descesse olhando fixamente para as paredes envidraçadas da porta. Pela primeira vez desde que chegara a Nerja, a sua cabeça não pensava, não recordava. Estava simplesmente à espera de um ascensor, via os cabos mexerem-se, depois a base do elevador que se aproximava, e dentro dele, uns sapatos rasos, umas pernas que bem poderiam ser..., uns joelhos como só conhecera os de .... e Maria com os olhos marejados e um sorriso nervoso.
O ascensor demorou uma eternidade a imobilizar-se. As portas abriram-se, ele quis entrar, ela quis sair, e o abraço que os uniu ouviu as palavras esmagadas pelas suas bocas unidas:
“Siegmund”
“Sieglinde”

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