quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

E outro Conto, também para registo


Não sei contar estórias, mas esta passou-se há poucas semanas e encerra em si uma alegria robusta que me apetece soltar a todos os ventos.
Aconteceu na praia dos Gambozinos, um lençol de areia e rolinhos de pedra numa baía fantástica para onde Sagres se debruça. Um mar português, a quem tanto o mundo deve, e que permanece todos os anos igual. A algumas centenas de metros uma ilhota rochosa sobressai como um monumento natural, lembrando os navios que há cinco séculos atrás a bordejavam.

Tudo começou há mais de trinta anos. A empresa onde eu trabalhava organizou uma conferência internacional sobre os recursos naturais, que teve lugar num hotel de Sagres. Aí conheci uma senhora alemã, cujo fervor criativo na defesa dos recursos naturais me impressionou. Num dos intervalos dos trabalhos, pediu-me para lhe emprestar o meu carro, pois desejava visitar ao fim da tarde a extremidade oposta da baía. Ofereci-me para a conduzir. As horas passaram sobre nós e trouxeram a noite sem que disso nos apercebêssemos. Eu nunca tinha sentido tanto prazer em conversar com alguém. No dia seguinte, procurámo-nos insistentemente e apercebemo-nos de que algo mais estava a nascer entre nós. Ambos éramos casados, tínhamos uma vida familiar estável, e tentámos reprimir o relacionamento. Nessa noite era o jantar de despedida. Procurámos mesas separadas. O jantar começou com uma sopa de santola, e não me lembro do que me serviram a seguir, pois não toquei em nada. Os nossos olhos cruzaram-se vezes sem conta e notei que ela também nada tinha comido. Senti que nos debatíamos nos suores de um dilema.
Martirizei-me com cenários, ensaiei frases, e regressei à realidade com as palmas ao último discurso. Olhámo-nos e simultaneamente dirigimo-nos para a saída. Vamos à praia dos Gambozinos, sugeriu ela. Fui buscar as chaves do carro, mas antes passei pela cozinha e pedi para me arranjarem pão, queijo de Serpa, uma garrafa de vinho tinto, um saca-rolhas, uma faca e dois copos.
Sentados naquele areal tão igual ao de hoje, não sabíamos o que dizer, e o luar que nos iluminava parecia condenar o nosso encontro. Então deu-se o milagre, as nossas mão dirigiram-se ao mesmo tempo para a tampa do cesto e... tocaram-se.
Eram 6 horas daquela manhã de Julho, a claridade já tinha rasgado a madrugada, e nós tínhamos comido quase tudo. Do saboroso vinho restavam apenas alguns aromas na garrafa. Tínhamos decidido não nos voltarmos a falar, e muito menos a ver, pois a úlcera da paixão estava aberta e precisava fechar-se, encerrando no seu casulo o amor vivo e só assim intacto. A sua voz disse-me: “Sempre que ouvirmos Wagner estaremos juntos”. Na despedida, o nó que eu tinha na garganta, deixou passar, quase inaudível, um juramento, feito ao rubro, olhos nos olhos: “Somos gémeos, como Sieglinde e Siegmund, e por isso, por muitos quilómetros que existam entre nós, nunca estaremos separados. Se um dia, o que hoje me faz decidir fechar o livro antes do fim, deixar de fazer sentido, voltarei a abri-lo e esperarei por ti, neste mesmo areal no dia 12 de Julho de todos os anos, até que tu também sintas condições para voltar a abrir o livro, ou até ao dia em que as forças do sopro da vida me abandonarem. Amen.”

No passado dia 12 de Julho, a praia estava com poucas pessoas, e eu, um pouco curvado sob o peso de tanta esperança, lá fui atravessando o areal. Era fácil arranjar um poiso isolado. O dia prometia calor. Abri o meu cesto e tirei uma garrafa de vinho tinto, arranjei um seixo grande e atei-o a ela, enterrando-a parcialmente à beira-mar. Assim ia controlando a temperatura, ora aproximando das ondas ora afastando. A meio da tarde o meu ânimo começou a fraquejar. Enviuvara há cinco anos e esta era a quinta vez que regressava aos Gambuzinos. Sempre no dia 12 de Julho. Todos os anos vinha carregado de uma esperança cheia de vida, mas acabava por partir com um desalento que me prostrava durante semanas. A ponto de achar doentia esta peregrinação anual. Depois, a pouco e pouco, retomava as leituras, ouvia a música que me falava ao coração e começava a acumular novas energias e esperanças para o próximo ano. Se fosse vivo!

Em cada um destes cinco anos tinha sido assim. Chegava aos Gambozinos com um cesto com pão, queijo de Serpa e uma garrafa de vinho tinto. Ao fim da tarde, começava a refeição. Sozinho. À minha frente passava invariavelmente o filme de uma outra noite. Que seria feito dela? Conhecera-a ali, naquela atmosfera, naquele mar, naquela areia, naqueles seixos tão arredondados pelo tempo. Alta noite, regressava ao carro e ia-me embora.

Este ano, a tarde trazia uma ligeira brisa. A noite ia pedir um agasalho. Estremeci com os arrepios que me percorreram. Não de frio, mas porque, de vez em quando, um pensamento negro atravessava-me o corpo, rasgando-me a alma, tirando-me bocados de vida: e se ela já tivesse morrido? Mas recompus-me, com o mesmo sorriso de sempre: ela estava tão viva quanto eu, pois assim o sentia.

A praia estava já deserta. Estendi uma toalha que segurei com seixos nas pontas. Linho, seixos e areia. Sorri. Dispus o queijo numa tábua, o pão alentejano num cestinho de prata e tirei os dois copos que levei devidamente acondicionados. Pela primeira vez desde que chegara aos Gambozinos a minha cabeça não pensava nada, não recordava nada. Estava simplesmente a pôr uma mesa para uma refeição.
Olhei para o céu e calculei que restavam umas duas horas de sol. A água do mar ainda estava apetecível e decidi dar uns últimos mergulhos. Enquanto me refrescava tentei calcular a temperatura da água. Talvez 18 graus. Temperatura perfeita para aquele vinho. Saí da água, sacudindo os braços, de olhos baixos para agarrar a garrafa. No seu lugar uns pés desnudados. Ergui a cabeça, a tremer. Uma senhora, provavelmente tão envelhecida quanto eu, mas que ostentava um sorriso, provavelmente tão nervoso quanto o meu, segurava, junto ao coração, a garrafa.

O abraço que nos agarrou ouviu as palavras esmagadas pelas nossas bocas unidas:
“Siegmund”
“Sieglinde”

Sem comentários: