segunda-feira, 19 de junho de 2017

A Montanha - Tempo - Fissuras - Querer




A Montanha

 

Só hoje vi a montanha
Uma massa enorme
Uma decoração do céu:
A minha montanha.

Reconheço-a sem hesitar
De olhos fechados
Em qualquer fotografia,
À minha montanha.

Respeito-a com veneração
Pelo eco do seu silêncio
Por me deixar pisá-la,
A minha montanha.

De manhã cedo esconde o sol
Á noite esconde outras estrelas
Noite e dia irradia luz,
A minha montanha.

A neve que lhe cobre a cabeça
Seja inverno ou verão
Convida-me a subir
À minha montanha.

Respiro o ar que te envolve
Rejuvenesço no cansaço
Rejubilo por brincar na neve
Da minha montanha.

O adolescente que vibra
Neste corpo castigado
Não se cansa de trepar
A minha montanha.

Na cabana de madeira
Vislumbro o mar que não se vê
Tudo me dás e recebo
Ó minha montanha.

Exausto e sem fôlego
Sento-me para ouvir
Segredos da tua boca
Ó minha montanha.

Todos os meus sentidos
Juntos para te sentir
Recebem o teu maior tesouro
Ó minha montanha:

As pegadas nunca apagadas
Os suspiros nunca calados
O calor nunca arrefecido
O riso nunca sumido
Os pensamentos nunca varridos
Os monólogos nunca acabados
A saudade nunca aliviada
Os sonhos nunca amachucados
O odor nunca misturado
O frémito nunca reprimido
O amor nunca desperdiçado
 
Tudo isto o meu amor deixou
Na minha montanha
Sonhada, onde eu nunca fui,
Na minha montanha
Sonhada, onde eu nunca deixei de estar
Com o meu amor.

Respiro fundo
Vomito ânsias
Recito litanias
Vivo feliz

Só hoje vi a montanha
Meu amor
Só hoje partiste para ela.
Vais embrulhada na minha paixão
Só assim, orgulhosa por amares e seres amada,
A minha montanha te recebe.

Só hoje vi a montanha
Meu amor
Só hoje chegaste dela.
Vens embrulhada na minha paixão
Atropelas as palavras para me contares
O que deixaste na minha montanha.

O nevoeiro dissipa-se sem pressa,
Caminhas ao meu encontro,
Vejo-te embrulhada na minha paixão,
Feliz, trazes-me a minha montanha.
Só hoje vi que tem a tua forma
Meu amor.




Tempo

 
As portas fecharam-se para julgar o Tempo
As suas vítimas apontaram-lhe o dedo
Sem hesitação, identificaram por unanimidade
O vil causador de tanto infortúnio: o Tempo.

As vozes agrestes ululavam de ouvido em ouvido
Acusando o Tempo de crimes imperdoáveis:
Ladrão da juventude 
Portador da velhice,
Usurpador de recordações
Gestor de memórias a cronómetro… do prazer.

O acusado ergueu-se lentamente
Senhor de todo o tempo do mundo
Usou uma voz profundamente calma
E com ela inundou o mundo:
Sou culpado! De tudo!
 
As suas vítimas permaneceram mudas
O Tempo havia-se condenado a si próprio
Mas os crimes de que era acusado, continuaram
E ninguém se sentiu aliviado ou justiçado.

Só o Tempo se condena a si mesmo
Porventura serão ciúmes de si próprio
Incapaz de resistir às nossas tentações
Ele alimenta-nos os fantasmas de estimação.

A juventude condenada pelo Tempo
Abandona os seus ingénuos portadores
A quem são oferecidos substitutos indesejáveis
Enfeitados de sofismas desejáveis.

Lutar contra o Tempo é cinicamente inglório
Pois sabe-se que ele vence pelo cansaço
E nos aplica o golpe fatal, sem aviso:
Oferecendo-nos a recordação da nossa juventude.

A memória assim oferecida
Situa-se num patamar inatingível
Desenhando a nossa crueldade para connosco
A juventude traz já consigo o anúncio do seu fim.

Louco com esperança, dou-te a minha alma
Para com ela dançares, ó Tempo,
Empresta-lhe o teu perfume de mulher
E devolve-ma, feita esperança louca.

 
 
Fissuras

 
Com a ajuda de quem sente outrem
Varro com gestos decididos
O pesadelo das fissuras
Na minha substância.

Com a ajuda de quem me ouve
Varro com gestos generosos
O risco de abrir fissuras
Na caverna do meu riso.

Com a ajuda de quem me faz conversa
Varro com gestos despudorados
A fissura matemática
Que me transformaria em elemento estatístico.

Com a ajuda de quem me lê
Varro com gestos obcecados
As fissuras herdadas
De quem não me ajuda.

 

 

Querer

 
Quero ser a tua boca
Para me sentir
Quero ser os teus olhos
Para me ver
Quero ser o teu nariz
Para me cheirar
Quero ser as tuas mãos
Para me agarrar
Quero ser os teus braços
Para me abraçar
Quero ser tu
Para me querer.

 
FL Wright

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