segunda-feira, 26 de junho de 2017

A Porta - Envelhecer - Crescer - Silêncio - Nostalgia da Memória - Penar - Sangue - As Pedras - A Viagem




A Porta

 
Porta aberta
Ao silêncio
Por ninguém devassado

Silêncio
Escancarado
Por ti, nele penetrada

Por esta porta
Invisível
Por ti construída.

Devassado
Penetrado
Construído
O meu silêncio é porta
Aberta
Escancarada
Invisível
Num jogo de luzes ensombradas
Por onde passam sombras luminosas.

 
 
 
 

Envelhecer

 
Quero envelhecer
Da mesma forma como aprendi
O plural de nós
Ou a inversão do sentido de uma vida
Longe dos cemitérios.

Quero envelhecer
Da mesma forma como escuto
Este coração cansado
Viajando descompassado, mas
Longe do silêncio.

Quero envelhecer
Da mesma forma como bebo
O azul de todas as cores
Saciando as sedes
Longe da água.

Quero envelhecer
Da mesma forma como transporto
O outono, por todas as estações
Extasiando o olhar
Longe da luz.

 

 

Crescer

 
A vida é um mar branco e negro
Cujo fim não tem fim
Viver é libertar energia, em ondas
Que procuram embrulhar
Quem amamos, até ao fim.

Mal nos apercebemos do branco ou do negro
Mas as ondas não param
Não dão descanso à alma
Não nos deixam pensar no mar
Crescemos sem saber o plural de mim.

Crescemos, distraídos com as nossas ondas
Esquecidos das ondas dos outros
Que nos procuram embrulhar
Neste mesmo mar, branco e negro
Cujo fim não tem fim.

 




Silêncio

 
Não deixes cair o silêncio que te sustenta
Não deixes de escrever quando o quiseres quebrar
Fá-lo porém, com tinta bem húmida
Passa as mãos pela escrita, esborratando-a
Passa as mãos pelo ar
O teu silêncio ficará gravado nelas.

 

 

 
Nostalgia da memória

 
Gosto de me perder no azul das cores
Mergulhar na superfície da nostalgia
Nela esbracejar como quem desbarata uma herança
Até encontrar a raiz da memória.

Gosto de me afogar nas ondas dos sonhos
Invadir os abismos da nostalgia
Neles percorrer os percursos ontem perdidos
Até encontrar a  raiz da memória.

Mas não gosto de lamber as feridas que me fizeram
Colar com cuspo e sangue os retalhos da nostalgia
Prefiro ferir-me de morte
Até arrancar a raiz da memória,
E voltar a plantá-la no orvalho da minha pele
Onde a poderei encontrar nas horas de nostalgia
Afagá-la quando as mãos não tiverem energia
Respirá-la quando o coração teimar em parar.

Gostarei de me conduzir às avessas, neste cerimonial
Tomar a hóstia da memória, no altar da nostalgia
Sacrificar o pão, em memória do passado,
Destruir o altar, em corpo e espírito,
Beber o vinho que fará abortar toda a esperança anunciada
Toda a nostalgia da memória.

 

 
 

Penar

 
Encontro os teus olhos e neles o teu olhar
Olhas para mim e alivias-me este penar;
Vai-te, forma de misericórdia, e leva os teus olhos.
Que me importa penar sem alívio
                                                 no coração.
Antes penar, sem o martírio
                                                 de procurar os teus olhos
E encontrá-los pousados noutra direcção.

 

 

 
Sangue

 
Procuro a nascente deste sangue
Que não pára
Escorrendo por mim,
Noite e dia.
Pensei que fosse o meu coração
Substitui-o por um a pilhas,
Mas o sangue não parou.

Um dia deixei que me mordesses,
Mosquito
Sugaste-me o sangue até te saciares
Foi fácil matar-te, bêbado,
Mas deixaste-me uma ferida que cicatrizou
Uma porta que se fechou no meu corpo,
Mas o sangue não parou.

Num dos meus passeios pela vida, mordeste-me,
Cobra
Sem saber porquê, adoeci,
O teu veneno entrava em mim
Mordi a ferida que me fizeste e chupei o veneno
Cuspi-o misturado com o meu sangue
Mas o sangue não parou.

Procuro a nascente deste sangue
Que não pára
Quero trocá-la por uma de água
Para que todos possam beber de mim
E não apenas os vampiros,
Como até aqui.

 

 

 

As Pedras

 

As pedras onde nos sentamos, choram chuva
Convencidas que amor é uma maldição sem fuga.

Na sua frieza, sentem os nossos corações,
Apertados nos espinhos dos cactos entre chorões.

As pedras não esquecem o que não nos lembra
E deixam crescer árvores sem sombra
Num permanente outono!

Em que as folhas não se vêem cair
Como se recusando a despedirem-se de ti.

As pedras onde nos sentamos, não choram só chuva, não!
Aprenderam connosco que amor é uma condenação.

 
 


A Viagem

 
Viajo seguro, por mares de águas paradas
Busco encontrar-me nelas
Mas as águas paradas transformam-se
E passo a tropeçar em pedras rolantes
Busco então encontrar-me nestas.

Viajo cansado de não parar
Busco o expoente da razão
Piso as águas que não me recebem
Tropeço nas pedras que se desfazem
Procuro perder-me, sem emoção.

 

 
Basquiat, Superman

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