segunda-feira, 26 de junho de 2017

A Lama - A Pele - O Fumo - Sombra - Somos - Sou - O Sonho - Fado - Sereia em S




A Lama

 
As minhas botas estão limpas
Mas o chão suja-se quando passo
Existe uma lama em mim
                                   Que só eu sinto!

Tento limpar a lama agarrada ao chão
Mas as minhas mãos não lhe tocam sequer
Ela, a lama, ri-se de mim e para mim
                                   Que só eu sinto!
                           
As pessoas passam pelo meu chão
Gabam a limpeza e invejam o brilho
Não vêem a lama agarrada a mim
                                   Que só eu sinto!

Um dia pisaste o meu chão e escorregaste
Com as tuas mãos, deste-me banho
Limpaste-me o chão daquela lama
                                   Que eu já não sinto!

 
 

 
A Pele

 
Esta memória das minhas paixões
Assaltante da solidão inerte
Faz-me sangrar sangue vivo
Derramado à flor da pele
Manchando-me a alma gota a gota.

Esfrego esta pele arrepiada
São arrepios denunciantes
Portas escancaradas à minha alma
Indícios de devassa indesejada
Que a escrita põe a descoberto.

Esta memória dos meus amores
Percorre-me o corpo trémulo
Arranha-me a pele ensanguentada
Dissolve-me o corpo na alma
Tecendo-me uma nova pele.

O corpo e a alma são os mesmos
Dissolvidos sob uma nova pele
Resistente a amores intemporais
Indiferente a paixões eternas
Sobre a qual o sangue se esvai no vazio
 
Esta memória sempiterna
Despida da omnipresente razão
Encontra-me esfolado mas protegido
Encarcerado em nova pele
Que sangra sem emoção.

Esta pele sem pigmentação
E no entanto impenetrável
Mantém-me num sono dormente
Que mistura sonho e realidade
E a memória não assimila.
 
Esfrego sem tocar nesta pele
Casulo protector das invasões
Barreira dissuasora das violações
Pele que não me deixa tremer
Pele que as memórias não arrepiam.
 
 


 

O Fumo

 
Teço devaneios nas tuas evoluções
Brinco aos prazeres sem emoções
Lavo os olhos contigo, fumo,
Até que dou por mim cativo da liberdade
Sonho e não quero outra vontade.

Já nada busco e nada preciso
Talvez seja tonto e sem siso
Basta-me cheirar-te, fumo,
E dispenso qualquer outra vivência
Sei que fujo, mas sem urgência.

Deleito-me nos braços de Epicur
E tu abraças-me com glamour
Abençoado charuto que te produz, fumo,
Raíz de prazer sem fronteiras
Destruidor de recônditas barreiras.
O meu riso baila contigo
Sejas amigo ou inimigo
Quero-te na mesma, fumo,
Porque só a ti não consigo agarrar
E assim não te posso deixar de desejar.

 

 

 
A Sombra

 
Adormeço, sem sono, à tua espera
Sem me mexer, para nada perder
Ardo neste inferno em pleno inverno
Vivo o momento só com um pensamento
Antecipo o prazer que vou ter
Quando o sol raiar e beijar
Esta árvore que me olha tão só
Mas que do nada te trará até mim.

O dia nasce mas o sol renasce
Tu apenas apareces como por magia
Simples mas com devota determinação
Ainda que alguma nuvem se atravesse
O sol far-te-á crescer até mim
E eu de mãos e dedos estendidos
Adormecido mas sem sono
Aguardo que tu, sombra, me toques.

 

  

Somos

 
Somos dois assaltantes nocturnos
Que se roubam mutuamente
À conquista de um espólio sem par.
 
Somos dois conquistadores diurnos
Que se fazem cativos mutuamente
Ao assalto de um coração ímpar.

Somos duas almas rebeldes
Entrelaçadas por assaltos e conquistas
Que reservam a noite para se darem.
 
Somos duas existências únicas mas singulares
Que se visitam em noites surpreendidas
Levando o que roubaram para se ofertarem.






Sou

 
Sou, mas nem sempre…

Acossado por esta tristeza teimosa
Escorrendo-me pelo corpo mutante
Prendendo-me com uma ventosa
Neste líquido fétido e sem vedante.

Sou, mas nem sempre…
 
Invadido por esta alegria pegajosa
Este ornamento que me põe doente
Tapando-me os poros como placa viscosa
Sufocando-me o coração e a mente.

Sou, mas nem sempre…

Apedrejado por nostalgia perigosa
Mutilando-me o sonho demente
Transformando a poesia em prosa
Neste papel onde nada me mente.

Sou, mas nem sempre…

Amado na incompreensão rugosa
Que me faz ser ateu e crente.

 


 

O Sonho

 
Meu sonho balofo e nocturno
Sei onde vais buscar inspiração:
A este meu maldito bafo diurno.
 
Meu sonho que me persegues noite e dia
Sei de onde vem tanta atormentação:
Deste meu maldito hálito a nostalgia.

Meu sonho amigo mas inimigo
Sei para onde me ofereces lugar de consolação:
Para esta maldita ideia de eu estar bem comigo.

Meu sonho peregrino e vadio
Sei hoje que quero a tua erradicação:
Vou livrar-me deste maldito cio.

Meu sonho tão real quanto mágico
Sei que te vou substituir por uma canção
E o teu esfumar nada terá de trágico.

Meu sonho esvaziado e sem umbigo
Arquitectei a tua desconstrução
Ao som do que canto quando estou comigo.

Meu sonho possessivo
Adeus minha obsessão
Cantarei para me sentir vivo.

 

 

 

Fado

 
Esta tristeza abraçada à melancolia
Envolta na saudade de ter alegria
Corrompe-me a alma durante o dia
Incendeia-me o corpo toda a noite.

Dizes-me que sentir assim é fado
Uma doença das minhas profundezas
Que me inverte o desejo alado
De amar todas as belezas.

Olhos nos olhos só sei que sofro
Por não querer deixar este sofrimento
Que é receber-te na forma de um sopro
Transfigurado mas sem fingimento.

Dizes-me que sentir assim é fado
Um sentimento que me oprime
Um frágil cuidado descuidado
Fado é definição mas não se define.

 

 
 

Sereia em S

 
Serei sereia em teu socorro
Sémen semearei em tua seara
Salmão serei e depois morro.

Saberei ser singela sereia
Sulcarei a tua solitária seara
Sentirei a solidão alheia.

Sonharei teus sonhos ao sol
Sorverei o mar da tua seara
Suplicarei ao Senhor um atol.

Sereia soberana em teu sentir
Soalheira será a tua seara
Sereia serei se eu souber sumir.

Sumirei de soslaio e de súbito
Sacrificado e sepultado na tua seara
Serei ressuscitado como teu súbdito.
 
Serei sereia como tu, para te salvar
Saberás, sim, incendiar a tua seara
Salvar-me-ás, sim, para eu te amar.

 

 Cecily Brown, Ceret landscape

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