segunda-feira, 26 de junho de 2017

Namorar - As Entranhas - O Rio - Egoísmo - A Mentira - Amar - Morrer - O Grito - As Chamas




Namorar

 
Deixa-me pernoitar no teu regaço
Desejar que o dia não tenha fim
Enebriar-me na volúpia do teu abraço
Namorar como em dia de S. Valentim.

Rouba-me os beijos que os meus lábios desenhem
Sufoca-me, arranha-me, cura-me, enfim
Arranca-me os desejos que não mentem
Namora-me como em dia de S. Valentim.

Olhas-me nos meus olhos que são teus
Tiro-te do sério, pões-me fora de mim
Embalo-te nos teus sonhos que são meus
Namoramos e todos os dias são de S. Valentim.

 

 
 

As Entranhas

 
As minhas estranhas entranhas sangram
Sangue que este coração já não quer
Num dilúvio de choro por quem as filhas são
O rasgar da ferida de conhecer o ser mulher.

Convoco os deuses do fogo
Num desafio onde me sei perdido
Rejeito a sorte neste jogo
Pois querer ser queimado é o meu único pedido.

Mexo nas entranhas e faço-me adivinho
Deixo de sentir a tormenta da dor
Vejo os erros filiais transformarem-se em carinho
No orgulho pelo pai que sangra por amor.






O Rio

 
São águas que nascem cristalinas
Tropeçam montanha abaixo
Bebem terra para crescer o caudal
Deixam de ser um simples riacho
Crescem em beleza sem igual.
 
São águas que viajam apertadas
Percorrem misérias alheias
Engrossam com chuvas de lágrimas
Revoltam-se em mil cheias
Injustamente incompreendidas e insultadas.

São águas que não podem parar
Feridas nos ramos dos seus filhos salgueiros
Anseiam por abandonar a paisagem
Desesperam por se diluir no mar
Mas estão condenadas a eterna viagem.

São águas onde me banho sem frio
Mergulhando nas alegrias da solidão
Molhando-me nas tristezas da multidão
Eu e elas um só, à vossa espera para secar,
São as minhas lágrimas, este rio.

 

 

 
Egoísmo

 
Eis um pássaro de bonita pluma
Peito inchado de tanto ar
Abre a boca e não fuma
Tal é o medo de esvaziar.

Eis um pássaro bom voador
Asas para voo certeiro
Olhos de insigne predador
Nariz que não sabe o que é cheiro.

Eis um pássaro mal acasalado
Só ele não se vê envelhecido
A solidão foi o seu fado
De alegrias está empobrecido.

Eis um pássaro sem eira nem beira
Passando em revista a vida inteira
Rejeitando qualquer alegria, por mais matreira
Aspirando por uma paixão, ao menos sorrateira.

Eis um pássaro digno de aturado estudo
Semeador de tristezas em quem esqueceu
Toureiro de alegrias do cinema mudo
Coveiro de flores a quem arrancou o gineceu.

Eis um pássaro a querer sentir e acordar
Soletrando viver e amar do fim para o princípio
Querendo ajuda para de novo aprender a voar
Sabendo que fora do ninho é o precipício.

Eis um pássaro, agora digno mensageiro
Numa asa traz tristeza, noutra alegria
Mas ambas puras e sem argueiro
Iluminando o breu, fazendo da noite dia.

Eis um pássaro, defunto egoísta
Voa agora rente ao sentimento
Abanando a alma autista
Sentindo da vida o chamamento.
 
Eis um pássaro de bonita pluma
Peito inchado rejeitando a bruma
Abrindo a boca para beijar
Batendo as asas para amar.

 

 
 

A Mentira

 
O esgoto das rejeições incha de mentiras
Inundado de verdades às avessas
Purgatório de falsas afirmações
Antro de corrupção íntima
Oráculo do desprezível
Altar da concupiscência
O esgoto das rejeições incha de mentiras
Vendo quem dele se alimenta nele se afogar.

Fugir de fugir, a tropeçar na mentira
Vivendo o tumulto dos dias em agonia
Percorrendo as escarpas das ilusões
Desafiando a gravidade por incúria
Subindo as montanhas sem declive
Arrastando a verticalidade na horizontal
Fugir de fugir, a tropeçar na mentira
Caindo num lago escuro para nele se afogar.

A mentira ecoa nos ouvidos mais distraídos
Fura os tímpanos mais sensíveis
Ensurdece quem a proclama
Azucrina as verdades sonantes
Sibila as falsidades ao crepúsculo
Grita as verdades sem convicção
A mentira ecoa nos ouvidos mais distraídos
Deles jorrando sangue onde se afogar.

Vem então a chuva límpida
Arrastando a consciência em turbilhão
Ensopando a pele e os ossos
Empurrando a mentira para fora do corpo
Fazendo desabar os seus alicerces
Atravessando a intimidade em cataclismo
Vem então a chuva límpida
Lançando a mentira na lama, para a afogar.

A mentira feiticeira arrasta-se penosamente
Os seus feitiços já não incomodam
Fica o medo da lembrança
A atracção da facilidade
A falsa solução das dificuldades
Para combater com a energia do ego
A mentira feiticeira arrasta-se penosamente
O seu estertor será o início do amor.

 

 

 

Amar

 
Amar é um estado de graça
Entramos nele à margem do medo
Queremos, desejamos, suplicamos
Que um estado assim não tenha fim;

Atrevemo-nos a acreditar no amor
Vivemos o sonho da unidade
Damos tudo o que não sabíamos ter
Recebemos o que desconhecíamos existir;

Julgamos amar o amor
Iludimo-nos nas suas formas
Confundimo-nos com seu bem estar
Saboreamos o seu mal estar;

Fazemos peregrinações nesse mar
Mergulhamos nas suas ondas
Absorvemos a calma duma maré
Embarcamos na violência doutra;

Matamos a sede com sal
Ardemos de dentro para fora
Sufocamos com os olhos fechados
Vomitamos dilúvios de luz;
 
Cegamos os sentidos nesse clarão
Explodimos em sonhos sem contenção
Lambemos o prazer da dor
Invertemos a noite e o dia;

Rasgamos os pensamentos
Mutilamos o corpo quente
Destruímos as horas e os minutos
Para que o fim não mais acabe;

Esfarrapamos os pés e as mãos
Arrancamos olhos, ouvidos e nariz
Mas continuamos a acreditar no amor
Sabendo agora que amar
                      é um estado de desgraça.

 
 
 
 
 
 
Morrer
 
A alma deixa de doer
Os olhos já não se cansam
As mãos prolongam o corpo
O teu coração deixa de se molhar
Não sobra nenhuma lágrima
Para eu sobre ele deixar escorrer
Morro de morte voluntária
No entanto, deixarei de querer morrer
Se por acaso suspeitar que suspiras
Se por acaso suspeitar o sonho
De ver a tua voz no teu cheiro
De deixar de ouvir a escuridão de não te saborear
Se por acaso os teus gestos nublados
Tiverem o contorno do teu coração
Então fugirei deste consolo da morte.
 
 
 
 
 
 
O Grito
 
Grito sem espasmo, sem dor ou prazer
Grito com raiva, com emoção e loucura
Grito para que oiças o que não consigo dizer
Grito para que saibas que não tenho cura.
Grito, não para desafiar a tua surdez
Grito, não porque sejas insensível
Grito, porque desafio a minha mudez
Grito, porque combato o impossível.
Grito que não quero mais te amar
Grito que rejeito a tua presença
Grito que não me afogo neste mar
Grito que rejeito esta sentença.
Grito para que fique sem voz
Grito para que não fiquemos sós
Grito para chamar o rio à foz
Grito para que o mar e o rio sejamos nós.
 
 
 
As Chamas
 
Chamas que incendiaste a meio do dia
                                   A meio da minha idade
Febre que torna o mercúrio abrasador
Adoeceste-me de tanta felicidade.
Chamas que ninguém consegue apagar
                                   A meio dizem não
Levo as mãos a este lado esquerdo
Quero queimá-las nas labaredas do coração.
Chamas onde, sem sono, me aconchego
                                   A meio de um cálice de vinho
Danço à chuva e aqueço um mundo
Onde tu e eu possamos fazer ninho.
Chamas rebeldes, nunca apaziguadas
                                   A meio convocam Deus
A um testemunho divino de um acto sagrado
À queima das preces dos nossos desejos ateus.
 
 
 
Casper, Abbey in the wood

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