segunda-feira, 19 de junho de 2017

Ritual - Chuva - O Espelho




Ritual

 
Defendido no ritual amado de A ver e sentir
O meu coração cavalgava como um louco
Alheio aos perigos desacreditados.

Veio então a tecnologia cerebral
Impondo o fim dos rituais odiados
Em nome da liberdade de se ser.

Coração que não te sabia tão forte
Quiseste inventar o ritual do fim dos rituais
Recusando-me os preparativos para a defesa
Empurrando-me para os braços da vulnerabilidade.

Defendido no ritual amado de A ver e sentir
O meu coração abria-se à primavera
Alheio aos cavalos de Tróia.

Aqui e ali, no meio do prazer
Começaram os espinhos a crescer
Povoando de dor o meu coração.

Com o tempo os espinhos ficaram pedra
O meu coração esfriou,
Entre a Primavera e a Pedra,
Bombeando, com enfado, o sangue
Que não perdia,
Avisando-me para erguer as defesas.

Moribundo, o meu coração recordava o ritual diário:
Hoje como ontem vi-A
Amanhã como hoje vou vê-La
Sinto-A constantemente sentada e apaixonada
Nestes jardins em Primavera, do meu coração.

Moribundo, o meu coração olha para dentro de si:
O jardim abandonado pela Primavera,
As pedras que se multiplicam até o encher
E que o tempo torna
Mais duras e ocas.

Moribundo, o meu coração já só quer um ritual:
Encher as pedras de sangue,
Lentamente
Dia após dia,
Fechando-se à Primavera,
Esvaziando-se de vida.
Sinto ondas de frio vindas do meu coração
Aberto às fúrias da morte
Varado pela lua inerte.
Espreito o seu interior
Vejo-A talhada em pedra
Vestida de sangue.

Moribundo, ergo os olhos para o céu
Secos de não ter mais lágrimas
Resignado por ter vivido só,
Sem arrependimento ou lamúria,
Por ter visto o amor com cegueira
Por não ter escutado o ritual do silêncio.
 

 

Chuva

 
Pus-me a ouvir a chuva
À força de te querer ouvir
Pareceram-me belos
Os sons que parecia ouvir.
 
Pus-me a receber a chuva
No meu corpo sequioso de ti
Pareceu-me estar saciado
Do corpo que parecia receber.

Pus-me a beber a chuva
Para matar a sede que me fizeste
Pareceu-me deixar de ter sede
Da água que parecia beber.

Pus-me a agarrar a chuva
Com as mãos que costumavas beijar
Pareceu-me sentir os teus beijos
Através do líquido que parecia agarrar.

Pus-me a dançar à chuva
Descalço como me ensinaste
Pareceu-me flutuar
Nas poças onde parecia dançar.

“Arde em febre” – ouvi de repente
“A chuva?” – perguntei em pranto
Sorriram condescendentes:
Não havia memória de ter chovido naquele deserto.

 

 

O Espelho

 
Pálido, quase exangue,
Olhos baços por onde saíra a vida
Lábios desmaiados inertes
Mãos de cadáver recente.

Diz-me espelho meu
Porque me mostras assim?

Se eu conseguisse olhar para mim
Por certo descobriria tons novos na minha pele
Brilhos diferentes que a vida dá
Movimentos delicados em diálogo.

Diz-me espelho meu
Porque não me mostras assim?

Alguém me matou sem que tenha havido crime
Numa morte que me escorre sem fim pela pele
Vejo relâmpagos apagados de vida cintilante
Mas também vejo a vida que criei, resplandecer.

Diz-me espelho meu
Porque não vês as minhas filhas em mim?

Olho para ti e vejo pouco de mim
Veneno sem paixão
Tristeza sem religião
Solidão no meio da multidão.

Diz-me espelho meu
Onde escondes a minha música?

Transmites melancolia onde há esperança
Mostras-me um palco vazio de actores
Quando ainda há espectáculo num vai e vem
Entre o palco e a plateia.

Não me digas nada espelho meu
Afinal não me consegues captar.

Pensa espelho meu
Se te estilhaçares, ver-me-ás nos teus bocados
Como um puzzle
Que ninguém consegue juntar.


FL Wright

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