segunda-feira, 26 de junho de 2017

O Império - Queimar - A Curva - Solidão - Erva Daninha - A Túlipa - Porto de Abrigo - A Lava - O Jardim




O Império

 
Sento-me no vazio e observo-me
A minha imaginação viaja sem paragens
Entre a flor de cerejeira e a catedral gótica
Tentando construir um império de vertigens.

Algures alguém sofre no mesmo exercício
De imaginação desenfreada, sem travões
Percorre jardins e lagos com cisnes sem cor
Tentando construir um império de emoções.

Como actores que persistem num palco em chamas
Nós, os que imaginamos impérios de quimera,
Apenas limpamos o suor do desprezo do público
Alargando este vazio que torna a vida efémera.

 

 
 

Queimar

 
O teu olhar repousado em mim
Tão logo o consigo captar
Provoca uma combustão sem fim
Queimando-me de desejo.

Lançando o meu olhar aos teus olhos
Derreto-me com o que vejo
Queimando-te até sermos só fumos
Subindo ao céu enlaçados num beijo.

 

 

 
A Curva

 
Farto do conforto falso de andar à deriva
Derrapei na curva do tempo
Ardi na fogueira dos livros proibidos
Renasci no seio do magma arrefecido
Assustei-me com o leite do pensamento
Cresci na procura dos becos da alegria
Tornei-me carrasco da luz
Coveiro de amores encarcerados
Carpinteiro de cadafalsos
Algoz de carpideiras.
 
Derrapei na curva do tempo
Armadilha para incautos viajantes
Onde a alimentação é grátis
E a comida plastificada
Onde se adormece no meio do nada
No falso conforto da lareira virtual
Que nos aquece a indiferença
Que nos congela a vontade
Amordaça o pensamento
Nos transforma em mortos-vivos.

Derrapei na curva do tempo
Acordei rancores bafientos
Ressuscitei ódios amarelecidos
Sepultei a compreensão
Rasteirei a inteligência
Estrangulei a criatividade
Quis beijar a divina morte
Não consegui senão esta vida
Hoje sou eremita do tempo sem curvas
À espera que uma morte me beije.

 

 
 

Solidão

 
Viajo à superfície da solidão
Lambendo os contornos dos mares
Perfurando as veredas da asfixia
Secando lágrimas em papel de escrita.

Viajo à superfície da solidão
Percorro paisagens inóspitas
Onde me recolho na aragem fria
Para escrever poesia maldita.

Viajo à superfície da solidão
Faço equilíbrio no fio da navalha
Provoco nos deuses a ira
Recebo mortalhas como guarita.

Viajo à superfície da solidão
Desencontro-me das pessoas
Desafio a penumbra da inteligência
Almejo a vida interdita.

Viajo à superfície da solidão
Aqueço os instintos junto dos lobos
Conquisto cavernas de impaciência
Onde os sonhos têm área restrita.

Viajo à superfície da solidão
Não porque rejeite a multidão
Não porque me isole na demência
Mas porque tu estás vazia de mim.

E então procuro-te na solidão
Onde nunca te devia ter perdido
Quero voltar a encher-te noite e dia
Como a uma fonte que nunca está cheia.

Vejo-te à deriva na solidão
A vontade não te deixa afundar
Agarras a mão que te estendo da superfície
A mesma mão cheia de tudo sem fim.

Amparados pela hospedeira solidão
Alcançamos a margem da vida
Paisagem que queremos não mais largar
Para conseguir o equilíbrio que nos faz rir.
 

 

 

Erva Daninha

 
Esta erva daninha que me abraça
Num sufoco de comiseração
Quem m´a arranca?
Esta erva daninha que me queima
Todo o corpo em putrefacção
Quem m´a arranca?
Esta erva daninha que me fulmina
Arrebatando-me o coração
Quem m´a arranca?

Esta erva daninha gémea de mim
Será arrancada em oração
Por ninguém que não eu!
Esta erva daninha já não cresce
Deixou de ter a sua alimentação
Por ninguém que não eu!
Esta erva daninha já definha
Contaminada pela minha podridão
Por ninguém que não eu!

Esta erva daninha vai secar
Morta pelo fel da devoção
Que sobre ela vomitei em gargalhadas fatais.

 

 

 
A Túlipa

 
Atravessei contigo bosques encantados
Onde pisaste comigo tapetes floridos
Escondemos do mundo o perfume sublime
Das flores mágicas em que tocámos.
 
Demos as mãos e espirrámos o pólen
Em espirros de riso irreverente
Que fizeram cair lágrimas dos nossos olhos
Sobre as flores mágicas com que brincámos.

O céu dos invejosos despejou chuva
Na violência da inundação veio a insegurança
Fomos separados pela lama da indiferença
Morreram as flores mágicas que abandonámos.

Agora o sol vingador tempera a terra fértil
Procuro-te com a semente de novos bosques
Na minha mão transporto uma tocha olímpica
Salva de entre as flores mágicas, levo-te esta túlipa.

 

 

 

Porto de Abrigo

 
No esplendor da tempestade
Lembro-me que não tenho idade
Nem tenho comunidade
Mas nestes momentos de castigo
Sinto falta de ti, meu porto de abrigo.

Olho para ti, alma só mas invejada
Orgulhosa, e por isso castigada
Dói-me ver-te assim fustigada
Nesses pesadelos quero afastar-te do perigo
Ofereço-me como teu porto de abrigo.

Não penses que é altruísmo
Isto que me abala como um sismo
Quero que saibas que é egoísmo
Pois a única forma de te ter comigo
É aceitares-me como porto de abrigo.

 

 

 
A Lava

 
Vulcão de sonhos e pesadelos, cospes
Lava de sombra incandescente, lavas
Encostas de civilização, enfeitas
Presépios de fogo em movimento, derretes
Noites a que se seguem noites, queimas
Dias que não viram qualquer luz, vomitas
Calores que nunca arrefecem, choras
Cinzas que perderam o calor, rezas
Boca fechada, olhos cerrados, anseias
Sofrimento íntimo, sem partilhas;
Vulcão de sonhos e pesadelos, engoles
Lava, a tua, com que queimas a solidão, a tua.

 

 

 

O Jardim

 
Hoje, como há precisamente um século,
Percorro, descalço, o meu jardim
Piso o chão que ainda cheira a ti
Abraço qualquer árvore, planta, tubérculo
Cometo o pecado de te colher para mim.

Hoje, transportada pela volúpia sem fim,
Percorres, descalça, o teu jardim
Atrais-me e eu saio de dentro de mim
Para entrar com prazer na tua escuridão
E iluminar-te de amor o coração.

Hoje, como há precisamente um século,
Percorremos, almas gémeas, o nosso jardim
Criamos ambientes que nos aproximam
Recusamos as evidências que nos afastam
Castigados pela memória de nele passear.

Hoje, como no princípio dos tempos,
Lembramo-nos do jardim
Onde a beleza recusa abandonar o teu rosto
Onde a certeza de que o nosso amor existe
Nos alivia da memória que teima não ter fim.
                                                       E persiste.

 

Carlo Carrà, o funeral do anarquista Galli

 

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